Avançar para o conteúdo principal

Dia 62_ “O Capuchinho Vermelho & Beri-Beri!”

Esta é a minha última noite em Bolama, amanhã vou para Bissau e depois para casa! Entretanto, passaram 2 meses e com eles um sem número de experiências e de vivências, e parece-me que só quando a “poeira baixar” é que darei conta de muitas delas e das suas consequências em mim, na minha maneira de encarar a realidade, nos meus sonhos, na minha cabeça. Ao longo de todos estes dias fiz um esforço para (ao estilo do lobo do Capuchinho Vermelho) ver melhor, ouvir melhor, cheirar melhor, tocar melhor, saborear melhor… e assim aprender mais e melhor! Aqui “não aprender” era quase impossível, a realidade, por vezes chocante, por vezes violenta, por vezes agradável, entrou-me pelos olhos a dentro e teimou em fixar-se… talvez no coração, talvez na pele, talvez num circuito neuronal… o tempo o dirá!
E hoje, mais uma vez, descobri que ir para lá do óbvio é mais do que uma coisa bonita é uma obrigação, em todas as áreas da vida. Aliás se há coisa que tentei praticar nestes dois meses foi uma “atitude integral”, por isso é que nos textos publicados aqui no “tasco” os assuntos vão para além da medicina, a vida é bem mais interessante! Contudo, hoje foi a medicina que me ensinou que andar de olhos bem abertos não é uma opção, esta lição vem dum grupo de rapazes jovens, aparentemente saudáveis, todos da mesma tabanca, que de repente, adoecem com dois quadros clínicos distintos, mas igualmente preocupantes. Alguns dos rapazes apresentavam um edema generalizado, acompanhado de insuficiência cardíaca. Outros apresentavam uma neuropatia periférica dos membros inferiores (falta de força e de sensibilidade nas pernas) com repercussões significativas na marcha. As queixas tinham mais ou menos um mês de duração e nada parecia explicá-las, aliás só as juntámos num mesmo grupo, porque eles apareceram todos no mesmo dia e uns atrás dos outros. Não fazíamos ideia do diagnóstico ou dos diagnósticos, tínhamos várias hipóteses em cima da mesa, umas mais rocambolescas que outras, mas todas acompanhadas dum problema: a falta de meios auxiliares de diagnóstico, é que sem análises, sem radiologia, sem ECG, torna-se complicado perceber se estamos a ir pelo caminho certo. Passado alguns dias, o médico da missão surge com um diagnóstico: deficiência de tiamina (vitamina B1), também conhecida como Beri-Beri, uma doença que não existe no nosso “mundo” e que lá só serve para ocupar espaço nas noites de estudo de estudantes de medicina antes dum exame de bioquímica, ou melhor, servia… Doença estranha, com um nome pouco respeitável, com um quadro clínico muito diverso e por isso difícil de identificar, com consequências graves e nefastas (como a morte), mas com um tratamento fácil, pois basta repor vitamina B1 que é o que está em falta! Assim fizemos, e ontem e hoje constatámos uma melhoria enorme tanto nos doentes edemaciados como nos que tinham dificuldades em andar, é bom ter soluções… é tão bom!
Moral da história, estes doentes seriam tratados para duas doenças diferentes, com tratamentos desadequados se por acaso alguém não tivesse agarrado em vários livros com vontade de encontrar a melhor solução para este problema.
Ora, como seria de esperar, nunca mais me vou esquecer desta doença, agora o que espero é que também nunca mais me esqueça de, em todas as situações da vida, pôr todas as hipóteses de diagnóstico ou de decisão em cima da mesa e de ponderar cada uma delas com seriedade em vez de ficar com a óbvia, porque apesar de raro o Beri-Beri anda por aí… e se “em medicina o que é raro é raro e o que é comum é comum”, na vida isto nem sempre é assim!
E por hoje é tudo…
Leitor imaginário mais um dia e vamos para casa!
Leitores que gostam de imaginar continuemos de olhos abertos…os diagnósticos em conjunto têm mais piada!

Comentários

  1. Bianca, já passaram 2 meses? Meu Deus, o tempo voa. Vens decerto diferente e melhor depois de uma experiência destas. Boa viagem de regresso a casa e que Deus te abençoe sempre. Um grande beijinho

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Deu tudo certo!

A mala está semi-feita, faltam as coisas pequenas, falta fechar, despachar e partir. É bom partir para casa, mas é difícil fechar este ciclo. Atrás de mim ficam as histórias, as pessoas com quem aprendi a ser bem mais que médica, ficam as coisas que só poderia ter vivido num país virado para o sol e para os sorrisos abertos. Elas ficam e vêm comigo no coração, porque a mala já tem excesso de peso, trago o que sou agora e que não era há três meses atrás.  Aliás, essa é a beleza desta experiência, vou provavelmente esquecer-me dos critérios do síndrome hemofagocítico, mas dificilmente da médica que deu chocolate e coca-cola à menina que tinha uma sonda naso-gástrica, dos meninos da enfermaria, dos adolescentes da consulta, isto tudo vai comigo e irá para onde eu for! Escrevo isto com o peito apertado, aquele desconforto na garganta, um incómodo que não sei explicar, no fundo estou ansiosa de chegar e a rebentar de saudades e ao mesmo tempo triste por deixar isto tudo para trás.

A aventura continua… por terras indianas

Os primeiros dias foram cheios de adaptações umas mais dolorosas do que outras,mas todas cheias de um encanto que não estava à espera de encontrar… um dia destes explico-vos isto melhor! Começámos por perceber como é que o centro funciona, que actividades é que existem, quem é que é o responsável pelos vários departamentos e depois veio a pergunta essencial: “Então, onde é que podemos ajudar?” e a resposta veio rápida e certeira e num instante transformou- se em várias actividades e responsabilidades, afinal não viemos passear… Graças a Deus! O André ficou com os rapazes que estão no programa de recuperação da toxicodependência, vai estar perto deles, vai aconselhá-los, e vai ensinar-lhes algumas competências pessoais e sociais usando princípios bíblicos (as famosas aulas do Desafio Jovem). Ah, e acrescentar a isto, ele também anda a pensar em construir um forno, para que se possa fazer pão aqui no centro e assim poupar dinheiro. Eu, por outro lado, não fiquei com nenhuma área específi

Quando falta o relógio…

Leitor imaginário, hoje a propósito do dia Mundial do VIH/SIDA resolvi interromper o silêncio a que nos habituei nos últimos meses e volto aqui, às nossas conversas, às histórias, às desconstruções… à jornada. Trago-te um texto que escrevi algures em Agosto, depois engavetei-o e ali ficou, hoje achei que devia soprar-lhe o cotão e deixar-me de peneiras literárias, então aqui o tens recortado e colado com um desabafo de hoje, mais uns pozinhos dos últimos meses e umas memórias antigas que ainda ardem. Há muito para dizer sobre a epidemia do VIH/SIDA, é uma história de grandes avanços científicos, recheada de vitórias impensáveis a outras gerações, uma caminhada de sucessos. Porém nos entretantos, houve muitos que foram ficando para trás, conheci uns quantos e trago alguns marcados para sempre na memória. Ela tinha 28 anos (a mesma idade que eu naquela altura) quando chegou à enfermaria já vinha condenada pelo linfoma e a SIDA que trazia, fizemos-lhe o diagnóstico e, infelizmente, nã