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Quando falta o relógio…

Leitor imaginário, hoje a propósito do dia Mundial do VIH/SIDA resolvi interromper o silêncio a que nos habituei nos últimos meses e volto aqui, às nossas conversas, às histórias, às desconstruções… à jornada. Trago-te um texto que escrevi algures em Agosto, depois engavetei-o e ali ficou, hoje achei que devia soprar-lhe o cotão e deixar-me de peneiras literárias, então aqui o tens recortado e colado com um desabafo de hoje, mais uns pozinhos dos últimos meses e umas memórias antigas que ainda ardem. Há muito para dizer sobre a epidemia do VIH/SIDA, é uma história de grandes avanços científicos, recheada de vitórias impensáveis a outras gerações, uma caminhada de sucessos. Porém nos entretantos, houve muitos que foram ficando para trás, conheci uns quantos e trago alguns marcados para sempre na memória. Ela tinha 28 anos (a mesma idade que eu naquela altura) quando chegou à enfermaria já vinha condenada pelo linfoma e a SIDA que trazia, fizemos-lhe o diagnóstico e, infelizmente, nã
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A festa, a arca e as moscas!

A jornada continua e a história também. No entanto, hoje a história é outra, o mundo é outro e eu sou outra noutro mundo! A necessidade de deixar um registo escrito deste período da vida é mais profunda do que visceral, vem da carcaça… dos ossos… da estrutura do esqueleto! Não conseguindo prever o que aí vem, tenho a certeza que será uma viragem no rumo de todos nós e de tudo em nós. Por isso, obriguei-me a sair do buraco da inércia e aqui estou à mercê de quem por aqui passa, e a jeito para futuras leituras retrospetivas que espero que tenham mais lucidez do que o momento presente. A vida aqui pelo Reino de Eswatini corre com uma normalidade tosca de quem vai à festa de vestido roto com sapatos de verniz. Temos poucos casos e à data apenas um morto, na última semana os casos aumentaram 1 -2 por dia, nada comparável às outras tragédias. Porém, o número de testes feitos deixa muitas dúvidas, só esta semana é que começaram a fazer testes no laboratório nacional, anteriormen

Diga 33...

Ontem fiz 33 anos.  Já são uma data de anos. Idade para ter juízo... diriam alguns!  E é de juízo que quero falar hoje. Há que parar e olhar para os anos que passaram e julgá-los, inquiri-los, medi-los e seguir em frente com a sentença. Partir a caminho dos 34 rumo à eternidade com a mala cheia das recolhas e das partilhas, das verdades aprendidas a custo e às cabeçadas, das marcas deixadas por uns e em outros.   Não sei se foi do clima quente e húmido dos últimos meses, se do silêncio, se das mudanças ou, muito provavelmente, todos estes fatores construíram o ecossistema perfeito para que estes 33 anos de ontem fossem especiais. Ao olhar para o ano que passou sinto a diferença daquilo que era e daquilo que agora sou. Como se o paradigma tivesse mudado, de repente, trocaram-me a etiqueta. E que troca tão dolorosa, ao puxar arrancaram tanto que o outro tanto ficou à mostra.  Quando cheguei a África era médica, mais até, era infeciologista, era isso que eu era e que queria

Em desembaraço

Passaram 10 meses desde a nossa partida… mais qualquer coisa e damos à luz o nosso burro! E que grande burro é este, com sorte vem às riscas e é uma zebra! Zurrices à parte e sem brincadeiras, realmente o que aqui temos vivido assemelha-se em muito a uma gestação, mas daquelas de risco e com direito a muitos sustos. O início, tal como o primeiro trimestre da gravidez, foi repleto de náuseas e enjoos, as coisas perderam o sabor do costume, a vida sentia-se letárgica e molengona, num arrasto ao ritmo do calor que se fazia sentir neste verão africano. A bem dizer, era deste ambiente não tão agradável que eu precisava para aprender a prestar atenção aos detalhes e ao silêncio. O ruído da vida em Portugal era tal que levei meses a ouvir aquele zumbido característico de quando se sai de um concerto com música muito alta, um tinido interior, constante e rítmico que me lembrava que a vida tinha mudado. Foi então uma espécie de desintoxicação, daquelas beras com ressaca a frio sem direit

A mesma mesa

Volto a sentar-me aqui, a mesma mesa! Imagino-vos sentados, do outro lado do mundo, à minha frente. A conversa começa devagar, amanheceu há pouco tempo e ainda cheira a café, o bebé adormeceu e a T. foi com o pai às compras, fiquei sozinha com vocês. Os pensamentos correm em fila para a avaliação, passou um mês, conseguimos um mês, sobrevivemos um mês e descobrimos tantas coisas. Realmente foi ano novo, vida nova, e é tanta a novidade que ainda me sinto tonta da viagem. No entanto, esta já é a nossa casa, já tem as nossas rotinas, conhece-nos o cheiro e as vontades. Claro está que faltam coisas, falta aquele resto de queijo de Azeitão que sobrou de ontem à noite, falta o pão do Chico pela manhã, a sopa da avó, o chouriço enrolado em película no frigorífico que acabará por ir para o lixo, a sobremesa que ficou do jantar de amigos de há 2 dias, as nódoas na toalha, o chão por limpar… Faltam-nos as pessoas e o barulho delas (silêncio). Faltam e faltarão, até que um dia, ou dia-a-d

Uma salada de fruta...

Ontem à noite tivemos direito a tempestade tropical, ribombou noite a dentro, tremeram as paredes e as janelas, e eu (confesso!), só as osgas permaneceram serenas enquanto se preparavam para o seu rodízio de insetos. Hoje, o dia amanheceu chuvoso e fresco, sabe-me tão bem esta temperatura abaixo dos 30 graus, só não gosto do cinzento carregado da chuva e da melancolia escorregadia da lama. Volto a escrever-vos da mesa da cozinha, a única mesa cá de casa! Gosto assim! Passaram 3 semanas e parece que foi ontem e, ao mesmo tempo, parece que foi sempre assim, esta mesa, esta chuva e o barulho do frigorífico que compete com os grilos lá de fora. O dia está quase no fim, a miúda está à porta de casa a brincar com os vizinhos, já escorregou uma porção de vezes na lama, está feliz da vida, há bocado apareceu aqui com uma banana na mão, foi uma vizinha que lhe deu. Ela comeu metade da banana e eu é que fiquei com o coração cheio, a fruta tem destas coisas! Foi como no outro dia, fo

Viemos!

Passaram quase dois anos desde a última vez que escrevi aqui. Tinha saudades! Pensei em voltar várias vezes, mas por alguma razão esta vontade de escrever só ganha mãos e vírgulas em clima tropical! Então, aqui estou eu e espero que tu, querido leitor imaginário, não tenhas desistido! Escrevo sentada na mesa da cozinha da casa nova, uma mini casa no ainda mais pequeno país do continente Africano: Suazilândia ou como se diz agora o Reino de Eswatini. A primeira vez que ouvi falar nele tive de ir ao google para o encontrar, uma bolinha minúscula entre a África do Sul e Moçambique, a única monarquia absoluta do mundo, um reino pacífico e de boa gente. O país do mundo com a maior incidência de infeção por VIH/SIDA, um terço da população, fizeram um estudo em que estimavam que, se o ritmo da epidemia continuasse, em 2050 deixaria de haver habitantes no país. No entanto, muito tem sido feito para melhorar estes números. O desafio é gigantesco e todas as mãos são pequeninas e to