O meu estágio está quase a acabar, em breve voltarei ao meu “mundo” que agora já não é o mesmo, até porque espero já não ser a mesma, se não tudo isto teria sido um grande desperdício de tempo e de recursos. E é em jeito de conclusão (provavelmente, uma de muitas) que hoje decidi escrever sobre os mitos que existem sobre “a África”, sendo que só nesta expressão reside um erro gigante, porque não há “a África”, mas as Áfricas! Várias, diferentes, cada país, cada região, cada povo tem uma identidade, não se pode pôr tudo num mesmo saco e dizer com a entoação dum turista a cheirar a repelente, besuntado em protector solar e calções de linho “na África” é assim ou é assado! Só a ignorância poderá não perceber as diferenças.
Comecemos então com um dogma muito famoso:
- Na África (sintam a ironia!) há muita fruta e boa fruta! Ele é mangas, papaias, goiabas, bananas, etc. Bom, estou cá há dois meses e nem vê-la, quanto mais comê-la! Por aqui, a expressão “fruta da época” tem realmente significado, cada fruta tem uma época em que é muito abundante e depois desaparece. Contudo, há a época das chuvas em que tudo é escasso… tive azar! E quando estava quase chateada com a “Dona África” por me ter enganado este tempo todo, pensei: “Olha que engraçado, há por aí muita gente que só come bananas na época delas, que só come mangas quando é tempo, e que quando não há fruta, como na época das chuvas…olha, não come!!” Pois é, aqui não dá para ir ao hipermercado comprar bananas da Costa Rica e mangas do Brasil. Nesta terra, a natureza ainda dita as regras, algumas bastante severas, estes três meses sem fruta significam crianças sem acesso a vitaminas o que em alguns casos resulta em avitaminoses nada bonitas de se diagnosticarem. Juntar a isso o facto da maioria das pessoas fazer apenas uma refeição por dia, a qual, normalmente, corresponde a uma tigela de arroz com molho e, às vezes, um pouco de peixe, juntemos ainda água não potável, misturemos tudo muito bem e na próxima vez que as ameixas do supermercado não nos agradarem, porque estão murchas ou verdes… pensemos duas, três vezes… Pensemos, porque pensar não faz mal, dói mas… o que arde cura!
Outra coisa engraçada:
- “Na África as coisas são muito baratas, é só pechinchas! “ é verdade que existem coisas absurdamente baratas, como o tabaco (3 cigarros não chegam a 20 cêntimos) e como o caju que pode encontrar-se a 50 cêntimos por kg (e depois é vendido na Europa a altos preços… alguém faz muito dinheiro com isto, e não são os camponeses que o colhem!). No entanto, há coisas que gostamos de chamar “essenciais” (palavra que muda consoante a latitude) como o leite em pó (não se esqueçam, que não há frigorífico cá em casa…não há electricidade, resta-nos a lata de leite em pó), os iogurtes, a carne que são caríssimas e totalmente inacessíveis para a maioria das pessoas. Num país sem indústria e com uma agricultura de subsistência quase tudo é importado e até o arroz que funciona como a base da alimentação vem de fora!
Passemos, para uma questão dita “fracturante”:
- Os meninos coitadinhos e ranhosos com barrigas grandes, “Ai, para aquelas crianças qualquer coisa serve, eles não têm nada, passam fome coitadinhos!” A sério, se há coisa que me irrita é este discurso de Miss Mundo, isso e enviarem caixas e caixotes de roupa estragada, cadernos cheios de folhas escritas, canetas que não escrevem, sapatos rotos e a minha preferida: uma caixa com mais de 200 sapatilhas de Ballet (sinceramente…). Por aqui, as necessidades são mais que muitas, há crianças desnutridas, há doenças facilmente curáveis que matam, e não há uma data de coisas que devia haver, porque este nosso mundo devia ser mais justo e igual! Mas, este fosso que há entre nós e eles não se resolve com uns quantos casacos velhos num contentor com destino “às Áfricas” para acalmar a consciência e arranjar espaço no armário. Esta injustiça vence-se com esforço, com uma aposta no chamado desenvolvimento sustentável, com formação, com estabilidade política e económica. E nós temos um papel a cumprir nesta missão que não se resume a suspirar diante de imagens de crianças magrinhas ou a fazer doações pela altura do Natal, até porque a ajuda pontual pode ser mais destrutiva do que benéfica. Descobrir o nosso papel nesta luta pela justiça é responsabilidade de cada um de nós! Por favor, não se contentem com as respostas fáceis que são como bálsamos para a alma e que deixam a realidade intacta e intocável… Há que abrir os olhos para o mundo que nos rodeia, mas também há que abrir as mãos e, por vezes, há que sujá-las…
Leitor imaginário e outros que por aí andam, é de mito em mito que vamos conhecendo o mundo, ia dizer “a África”, mas lembrei-me a tempo que isso é um mito…
Um abraço
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