Avançar para o conteúdo principal

Dia 44_ As assimetrias

A semana correu com tranquilidade, o sossego necessário para as reflexões, ninguém consegue pensar ou pelo menos ir longe nessa caminhada quando o relógio passa de indicador a inquisidor. Talvez por isto, hoje não vos trago um episódio ou um acontecimento marcante, mas alguns traços do dia-a-dia que por aqui se vive e que podem ou não dar origem a algumas conclusões interessantes, dependerá do tempo que tivermos disponível…

Comecemos pelo modo como as pessoas se cumprimentam:

-“Bon dia!kumo é ke bu manse?” - “Bom dia! Como é que acordaste?” – interessante, por aqui não se pergunta se dormiste bem, mas se acordaste bem, afinal é mesmo isso que importa!

Depois segue-se a pergunta : “Kumo é di Kurpo?” – “Como é que está o teu corpo, como está a saúde?” – num sítio onde a esperança média de vida anda nos 45 anos a questão do corpo ganha uma importância que do nosso lado da janela é difícil de compreender. A angústia não reside na pele casca de laranja, nos cabelos brancos, no perímetro abdominal… por estas bandas a angústia é outra. Crua. Elementar. Fome. Sede. Frio. Calor.

“Kumo stá a família?” – “ Como está a família?” – talvez isto ainda se pergunte nas aldeias de Portugal (e nesse grande centro urbano chamado Fanhões), mas nas cidades já ninguém pergunta, só alguém que conhece a nossa família é que vai perguntar por ela. Porém, aqui qualquer desconhecido tem essa preocupação, o que nos ajuda a conhecer um pouco mais do coração destas pessoas.

Um coração cheio de paradoxos, cheio de hipérboles, assim como todos os corações devem ser! Aqui respeitam-se os idosos como quem venera a riqueza da existência os “Omes Grandes” como lhes chamam têm mais voz e poder de decisão que toda a gente, são reconhecidos pela experiência e pela sabedoria adquirida ao longo dos dias, não há lares de idosos, nem casas de repouso… ninguém compreende a sua utilidade. (E afinal qual é?!)

Por outro lado, olham para as crianças com olhos muito diferentes dos nossos, não as protegem das esquinas dos móveis nem das correntes de ar, não lhes dão leite com extra cálcio e vitamina B12, não as inscrevem no inglês nem nas aulas de piano aos 4 anos… Estas crianças não vêem o Disney Channel e não é porque é muito violento, é porque não têm TV em casa, também não têm electricidade, bom… há muitas coisas que elas não têm, lá isso é verdade! Contudo, conhecem melhor o colo da mãe do que muitas crianças das nossas, andam nas costas da mãe para todo o lado, ninguém as põe na creche às 7h para as ir recolher às 20h… brincam descalças na rua, aprendem a participar nas tarefas da família bem cedo, sabem que ir à escola é um privilégio (aqui não se bate nos professores!). Se chegam aos 5 anos são umas vencedoras, atingir esta etapa é sinal de grande resistência física e de muita vontade de viver. No outro dia perguntei a uma mãe qual era o nome do seu recém nascido… não tinha nome, só tinha passado uma semana, ainda tinha muito a provar, os nomes vêm mais tarde! Nesta terra o valor das pessoas cresce à medida que vão envelhecendo, na nossa é precisamente ao contrário, enquanto eles lutam para poder envelhecer, nós lutamos para travar esse envelhecimento…

Oh mundo assimétrico e com tanto para ensinar… e quanto mais orientados, conscientes e colaborantes melhor, e assim fica provado que para conhecer o coração das pessoas basta saber como é que elas dizem os “Bons dias”, qual ecocardiograma qual quê!

E aqui ficam os desejos de um óptimo dia para o Leitor imaginário e para os menos imaginários, também.

Comentários

  1. Ola mana!
    olha ja nao posso ouvir a mae a dizer q tem saudades tuas..ve la se voltas viva para depois a consolares :D Gostamos muito de ti! ve la se dizes alguma coisa. a mae ta farta de te tentar ligar mas nao consegue. Beijocas grandes. Dta

    A mae diz que tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem saudades tem sudadedes. lol :D

    Assinado: Nádia a tua super irma ^^

    ResponderEliminar
  2. Hellooo Bianca! :)
    Já há umas semanas que não passava aqui pelo teu tasco para ler com a devida atenção os teus relatos. Estive agora a actualizar-me e mais uma vez digo que aprecio muito a forma como descreves as coisas que estás aí a viver e como nos dás uma imagem crua e realista da sociedade tão diferente que aí encontras.

    Vou ficar a remoer as coisas que partilhaste, tentando também eu ser menos míope, mais orientado, consciente e colaborante...

    Aproveita bem estas últimas semanas! Força aí! Beijinhos

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Deu tudo certo!

A mala está semi-feita, faltam as coisas pequenas, falta fechar, despachar e partir. É bom partir para casa, mas é difícil fechar este ciclo. Atrás de mim ficam as histórias, as pessoas com quem aprendi a ser bem mais que médica, ficam as coisas que só poderia ter vivido num país virado para o sol e para os sorrisos abertos. Elas ficam e vêm comigo no coração, porque a mala já tem excesso de peso, trago o que sou agora e que não era há três meses atrás.  Aliás, essa é a beleza desta experiência, vou provavelmente esquecer-me dos critérios do síndrome hemofagocítico, mas dificilmente da médica que deu chocolate e coca-cola à menina que tinha uma sonda naso-gástrica, dos meninos da enfermaria, dos adolescentes da consulta, isto tudo vai comigo e irá para onde eu for! Escrevo isto com o peito apertado, aquele desconforto na garganta, um incómodo que não sei explicar, no fundo estou ansiosa de chegar e a rebentar de saudades e ao mesmo tempo triste por deixar isto tudo para trás.

Em desembaraço

Passaram 10 meses desde a nossa partida… mais qualquer coisa e damos à luz o nosso burro! E que grande burro é este, com sorte vem às riscas e é uma zebra! Zurrices à parte e sem brincadeiras, realmente o que aqui temos vivido assemelha-se em muito a uma gestação, mas daquelas de risco e com direito a muitos sustos. O início, tal como o primeiro trimestre da gravidez, foi repleto de náuseas e enjoos, as coisas perderam o sabor do costume, a vida sentia-se letárgica e molengona, num arrasto ao ritmo do calor que se fazia sentir neste verão africano. A bem dizer, era deste ambiente não tão agradável que eu precisava para aprender a prestar atenção aos detalhes e ao silêncio. O ruído da vida em Portugal era tal que levei meses a ouvir aquele zumbido característico de quando se sai de um concerto com música muito alta, um tinido interior, constante e rítmico que me lembrava que a vida tinha mudado. Foi então uma espécie de desintoxicação, daquelas beras com ressaca a frio sem direit

A festa, a arca e as moscas!

A jornada continua e a história também. No entanto, hoje a história é outra, o mundo é outro e eu sou outra noutro mundo! A necessidade de deixar um registo escrito deste período da vida é mais profunda do que visceral, vem da carcaça… dos ossos… da estrutura do esqueleto! Não conseguindo prever o que aí vem, tenho a certeza que será uma viragem no rumo de todos nós e de tudo em nós. Por isso, obriguei-me a sair do buraco da inércia e aqui estou à mercê de quem por aqui passa, e a jeito para futuras leituras retrospetivas que espero que tenham mais lucidez do que o momento presente. A vida aqui pelo Reino de Eswatini corre com uma normalidade tosca de quem vai à festa de vestido roto com sapatos de verniz. Temos poucos casos e à data apenas um morto, na última semana os casos aumentaram 1 -2 por dia, nada comparável às outras tragédias. Porém, o número de testes feitos deixa muitas dúvidas, só esta semana é que começaram a fazer testes no laboratório nacional, anteriormen