Voltámos à ilha das Galinhas! E a palavra “exagero” não me sai da cabeça, trouxe-a comigo e vou guardá-la na mala à prova de água e de tempo, porque ela sozinha consegue resumir toda a minha experiência na ilha e no resto da Guiné! E antes de franzirem a testa e de acharem que eu é que estou a exagerar, deixem-me explicar.
Comecemos de cima para baixo, pelo céu desta terra, que é exageradamente lindo e impressionante, as estrelas brilham mais e melhor e a lua (ai a lua!) é avassaladora, o pôr-do-sol tem mais cores e texturas do que alguma vez me ensinaram. Neste céu tudo é gigante, cheio de beleza, tudo faz arregalar os olhos de alguém que, como eu e como nós, se habituou a olhar para o céu da janela do 5ºandar enquanto tenta evitar os postes de electricidade, os prédios vizinhos e a publicidade do próximo candidato.
Ainda vinda do céu temos a chuva e por aqui quando chove, chove a sério, o dia todo e em quantidades industriais, não é aquela “chuvinha molha parvos”, não se brinca se é para chover tem de haver raios e coriscos, árvores caídas e rios a transbordar! E com o calor é a mesma coisa, faz um calor que é um exagero…um exagero de suor e de sensação peganhenta e não há banho que salve, e com esse calor vem um cansaço, uma letargia, uma apatia inexplicável!
E em exagero e com exagero há que falar dos mafarricos que circulam no céu, os mosquitos, que são muitos, grandes e maus e que, ainda por cima, trazem com eles a caixinha da malária! Dessa há que ter medo, nestes últimos dias em 60 doentes 30 tinham malária, mais uma vez um exagero... tudo em exagero!
Mas não são só as doenças que se dão a exageros, aqui até os medicamentos o fazem, por exemplo, na ilha das galinhas chamaram-nos para ver um “Ome grande” (idoso) que estava muito doente, quando chegámos lá quase que não foi preciso usar estetoscópio para diagnosticar a pneumonia que ele tinha, estava com uma dificuldade respiratória gigante, com taquicardia, febre e ainda com uma perturbação da consciência. Os pulmões estavam cheios de bichos e de ranho até ao tecto (modo didáctico de explicar a pneumonia aos doentes), a solução era um antibiótico endovenoso, um soro, uma máscara de oxigénio, monitorização apertada, num hospital central numa enfermaria de medicina interna… era tudo muito lindo, mas não há! Estamos na Guiné, numa ilha sem electricidade, sem água potável, sem hospital, sem meios, e foi sentados no chão da palhota do Tio João que decidimos que a única coisa que podíamos fazer era dar um antibiótico injectável e esperar… e assim fizemos! Ou melhor, fiz, dei o meu primeiro antibiótico injectável!! No dia seguinte lá fui eu à palhota, depois de me perder 3 vezes, reavaliar o doente e dar a segunda dose de antibiótico, e constatar que nesta terra até os antibióticos têm um efeito exagerado, o Tio João estava muito melhor, exageradamente melhor… valha-nos isso! Terceiro dia e última dose de antibiótico! Mas estávamos noutra tabanca a 10 km de distância, era preciso ir lá de mota dar a injecção, preparou-se o antibiótico e colocou-se na seringa, o nosso marinheiro (que conduz motas nas horas livres) foi buscar a mota, e isto sim é digno de ser contado, lá fomos nós rumo à outra ponta da ilha, sendo que eu ia de seringa em punho (mesmo em punho, apontada para o céu, de modo a não ferir ninguém), estetoscópio num bolso e compressas no outro…tentem imaginar, mas só visto! E assim se matam os bichos dos pulmões, com exageros dignos do Macgyver!
Habituei-me a admirar o equilíbrio e a moderação, ensinaram-me que no meio morava a virtude, mas depois destas histórias, acho que isto nem sempre é verdade, claramente há muita virtude num céu brutalmente estrelado e não num céu moderadamente iluminado, há mais beleza num sorriso exageradamente aberto do que num parcialmente simpático. Por vezes, quanto mais melhor, às vezes o que é demais cheira bem, cheira muito bem!
Por outro lado, há alturas em que o que é de menos cheira mal, cheira mal não haver uma cama num hospital para o Tio João, cheira mal as pessoas ainda morrerem de malária, cheira mal não haver electricidade numa ilha inteira…
E assim se aprende a desconfiar daquilo que nos ensinaram, porque equilíbrio é bom e faz falta, a harmonia traz beleza e segurança, mas há exageros que sabem bem, há hipérboles magnificas… e esta terra está cheia delas, arrisco-me a dizer que a beleza da cultura guineense reside no exagero, nas cores exageradas, no sorriso rasgado, na música alta e na dança extravagante, na vontade alucinada de refazer um país que tal como as pessoas é exageradamente complexo…
Leitor imaginário, estou exageradamente contente por poder conhecer esta parte do mundo que é menos moderada, menos arrumada, menos limpa… mas nunca menos bela!
acho que parte da vida é questionarmos o que nos ensinaram
ResponderEliminara outra... é questionarmos sabiamente
invejo-te
estas experiencias unicas e irrepetiveis estão a contribuir para a tua formaçao
a marca destes tempos não vai passar
continua a escrever,
eu continuo a ler
"Habituei-me a admirar o equilíbrio e a moderação, ensinaram-me que no meio morava a virtude, mas depois destas histórias, acho que isto nem sempre é verdade, claramente há muita virtude num céu brutalmente estrelado e não num céu moderadamente iluminado" sem palavras
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