Acabei agora de tirar do forno um
bolo. A casa cheira bem, cheira a confortável, o bolo está bonito, falta a
cobertura de chocolate e as bolinhas coloridas, mas acho que no fim ficará um
bonito bolo de aniversário! Amanhã é dia de festa na enfermaria de pediatria,
um menino faz anos e nós vamos fazer uma surpresa, vai haver bolo, brigadeiros,
e até um hamburger do MacDonald´s!
Enquanto escrevo isto imagino a
festa que aí vem sorrio e fico contente por poder participar! Ao mesmo tempo
pesa-me o sorriso e o olhar resvala para a tristeza. A festa é especial, porque
o motivo é especial, este menino é o mais especial de todos, gostava tanto que
ele soubesse isso, este bolo de cenoura é a minha maneira de dizer isso… espero
que ele entenda.
A história que
aí vem é triste, escura e feia. Nem sei se a devia partilhar convosco, será que
a vamos entender? Ou vai ser só a desgraça alheia, como quando abrandamos o
carro para ver um acidente (Quem bateu? Quantos carros? Há sangue?). Esse é um
dos riscos deste blog, fazer disto
uma montra de histórias umas mais tristes do que outras, mas são as “dos outros”,
estão longe de nós, como ver o massacre que está a acontecer na Síria e pedir
para mudar de canal porque até parece mal comer o jantar e ver milhões de
pessoas em fuga do seu próprio país, muda para os anúncios, desliga, aliena,
evade, foge, isso é dos outros, ainda bem, olha passa-me o pão!… Perigos à
parte, o desafio é tornar estas histórias nossas, próximas, tão perto que nos
façam querer mudar, alterar o que está mal neste mundo tão cheio de pontas
soltas.
A mãe deste
menino morreu e ele teve de ir viver com o pai com quem não tinha muito
contacto. De repente, adoeceu, adoeceu tanto que alguém pediu um teste VIH que
deu positivo, foram atrás do motivo e encontraram. Ele foi abusado, ninguém
sabe por quem, e ele não fala sobre isso. Continua doente, muito doente e não fala
sobre isso. Deixou de comer e começou a emagrecer ao ponto de necessitar de um
tubo no nariz que leva a comida diretamente ao estômago e nem sobre isso ele
quer falar. Ele desistiu! Comer para quê? Talvez por isso, no início nem
respondia às minhas perguntas, nunca sorria, nunca chorava, ele não queria
falar. E o que é que o médico faz? Este projeto de infeciologista fez o quê?
Pouco, continuei a ir lá dar os bons dias com umas tentativa de piada pelo
meio, sugeri um antidepressivo, fui contra a colocação da sonda no nariz, mas
depois rendi-me aos 30kgs, ajustei os retrovirais… pouquíssimo! O que vale é
que nem tudo depende do que fazemos! (silêncio, enquanto gravo isto no coração)
É o que vale! Esta semana ele sorriu para mim, ele até disse mais do que monossílabos,
engordou umas gramas e vi-o comer o pão do pequeno-almoço! A esperança também
pode vir em forma de sandes! Ele está a melhorar! E amanhã temos festa! Amanhã
celebramos o fato de ele ter nascido, um menino especial que viveu o que nunca
deveria ter vivido, mas que está a tentar ultrapassar as suas dificuldades, ele
até já come o pão! E amanha há bolo!
Leitor imaginário,
esta enfermaria é pesada, e as histórias agarram-se ao coração, não têm sido dias
fáceis, mas tenho aprendido muito e esse é que é o objetivo. Espero que também
tu (vocês?) possas lembrar-te, enquanto lês este texto, que as histórias dos
outros também são nossas e que essa é a beleza da Páscoa.
Quanto aos
outros leitores que aqui vieram parar, bem-vindos a esta casa, espero que estas
“minhas” histórias também vos aproximem duma Páscoa com menos coelhinhos e mais
partilha, menos ovos de chocolate e mais esperança na reconciliação.
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