Assim se passa um mês e meio! Aprendi as manhas da fruta e
do fiambre que aqui não é fiambre é presunto, tenho sempre de repetir as frases
e de preferência cantadas em português do Brasil, descobri que toda a gente
gosta do meu sotaque e que todos os brasileiros têm um familiar português (seja
uma tia, primo, afilhado, o vizinho da vizinha) e que sítio não é lugar, mas
sim uma grande quinta!
Comecei o estágio pelo serviço de urgência, um mês, 5 dias
por semana das 7h às 20h (mais os picos)… Doeu! Ainda dói, arde, à espera que
cure! As muitas horas diárias não doeram, arranharam, o que doeu, o que “machucou”
até ao fim do estômago, onde agora tenho um grande nó foi o que vi! Vi muita
desgraça, tristeza, pobreza, declínio… Vi a SIDA, entidade que surgiu nos anos
80 e que assustou médicos e doentes, matou muita gente, porque não tínhamos medicamentos,
ninguém conhecia a doença, mas com o tempo as coisas mudaram, veio a esperança
mascarada de “inibidores da protéase” (remédios!) e eles deixaram de morrer,
não se cura, mas trata-se… Quer dizer, podíamos tratar… podemos… existem
medicamentos… existem doentes… o problema é a coexistência! Vi SIDA como nunca
tinha visto, vi a pele e o osso dos doentes sem nada no meio para amparar, vi o
grave e o gravíssimo, vi lepra e micoses sistémicas, vi um bocadinho da Guiné e
da Índia e revi a sensação de impotência, de pequenez, de insuficiência… Aqui
estou eu mais uma vez de lanche (pão e peixe noutra época) na mão a dizer que
só tenho isto…
Foi no meio destes pensamentos… tenho pouco, sou pouco, é ridículo
de tão pouco, tenho de estudar mais, ouvir mais, ser mais, é aqui que chega um
dos doentes que mais me marcou. (Dados fictícios) Cleidi que era Anderson, que era prostituta, que
era travesti, que era toxicodependente, que tinha diagnóstico de HIV, mas que
nunca quis tratar. Chega com falta de ar, aflita, vulnerável, precisa de
ajuda, em poucas palavras conta que sabe que tem HIV mas que a vida é muito
complicada, nunca tratou porque tem medo, hoje veio porque não consegue
respirar, anda assim há 3 semanas. Mas há mais, ontem, algures num desses vãos
de escadas da vida, colocou silicone industrial no “bum-bum” para parecer maior
e mais redondinho. Incrédula, examino a pele inflamada, abcedada e ainda com
bocadinhos de cartão a fazer de penso para tapar os locais de injeção. Porquê?
(silêncio) Não preciso que ela (ele? Não interessa!) responda, cá dentro sei
bem que o desespero humano, a falta de rumo, as contrariedades da vida aumentam
a bola de neve de tal maneira que depois de cair dá a sensação que ainda
estamos a rodar. Olho para ela e tento entender, o medo de tratar o HIV e a
falta dele para colocar o silicone, o medo escondido atrás da maquilhagem e da
roupa justa enquanto vende o que nunca deveria ser vendido, tento, mas não
consigo. Mas sei que o problema dela é mais fundo do que a falta de juízo para
tomar os medicamentos, bem mais complexo do que a identidade sexual, vai para
lá… começou antes, precisou antes… e para isso não há comprimidos a inibirem
enzimas. Então enquanto vejo a saturação de oxigénio, olho-a nos olhos e falo
de mudança, vamos começar outra vez, vamos parar de desistir. Saio da sala
sufocada pela máscara e pela ansiedade de ver alguém com 27 anos com tão pouca
esperança.
A infeciologia tem destas coisas, o Brasil tem destas
coisas, e eu… estou aqui para aprender!
Leitor imaginário, espero ter a capacidade de guardar no
coração o que tenho visto e de partilhar contigo e com os nossos amigos o meu “lanche”.
Restantes amigos, se vieram à procura de sol e trópicos,
espero que não tenham ficado desiludidos, as histórias sérias também ajudam a
limpar a miopia.
Que triste, Bianca. Que dor. Que Deus te dê força para tratares muitas como esta (este?) Algures, há ainda a imagem de Deus...
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