Acordei com vontade de partilhar isto convosco, esta ideia
anda a moer-me há demasiado tempo, ela vai aparecendo no meio dos meus
pensamentos, vai espreitando, insinua-se, não explode, não dói, mas pica,
incomoda, perturba, uma pedra no sapato, das pequeninas, como todas as angústias
existenciais devem ser.
Tudo começou numa daquelas caminhadas loucas que vão dar à
praia mais bela do mundo, com as cachoeiras mais majestosas, e tudo imperdível
e mais meia dúzia de elogios, passarinhos e bichinhos tropicais, pronto, lá me
enganou… como sempre! Então sapatinhos de caminhada, calças (ah pois, porque as
picadas de mosquito do dia anterior ainda estavam na memória e nas perninhas),
repelente, protetor solar (difícil é decidir qual pôr primeiro!) e lá vamos nós…
24 km… (em distância total, mas o acordo era ir até dar, eu já vos disse que
sou sempre enganada com estas falinhas mansas!).
Uma subida para começar, lama da chuva de ontem, pedras, resumindo:
“o mato!”, Eu a caminhar com cânticos de alegria (não!), mas lá fui, até tinha
um pau de caminhada (que chique!), e fui… ultrapassei as subidas, quase caí mil
vezes nas descidas (quase!), pés na lama demasiadas vezes, enfim! Não foram só
adversidades, vi um passaroco endémico da região, o pica-pau de topete vermelho
e fiquei contente porque só eu é que vi (AhAhAh) e quando chegámos à primeira
cachoeira aí sim pensei que valeu a pena a lama que tinha nas unhas dos pés!
Não vou estar aqui a meter-vos inveja, mas sim, as
cachoeiras eram ótimas, e depois da caminhada ainda melhores. Haviam mais duas
com muitos quilómetros pelo meio, ainda tentámos alcançar a segunda, mas ali a
meio tomámos a sábia decisão de voltar para trás, pelo princípio universal de
que tudo o que caminhares para a frente, terás de caminhar para trás.
Foi no caminho da volta, no silêncio da mata atlântica,
entre tocas de cobra, barulhinhos de qualquer coisa que de certeza que é perigoso,
a água da cachoeira lá atrás, as folhas, a lama, a bicharada, e os pensamentos…
Primeiro confusos, muitos, barulhentos, depois mais tranquilos, alinhados,
transparentes, ao ritmo do passo. Enquanto olho para o chão, a cabeça voa para
a caminhada, para onde ponho os pés, e estou atenta aos galhos do caminho,
tenho cuidado com as poças de lama, procuro pôr os pés nas pedras secas,
desvio-me da abelha, e vou andando, quero chegar, tenho fome, preciso de um
banho, de certeza que falta pouco para chegar, e caminho, olho para os pés e de
vez em quando para a frente, mas rapidamente olho para onde estou a pôr os pés,
não quero escorregar! E o esquilo? Viste o esquilo? Não, estava a olhar para o
chão. Onde está? Já fugiu!
Aqui muda tudo! Oiço lá no fundo dos ouvidos, perto do
coração, uma pergunta daquelas com rasteira, engulo em seco, paro e olho à
volta, olho para cima, respiro fundo, torno a ouvir a cachoeira, e a pergunta
volta em tom suave. Para onde é que estás a olhar? Em defesa respondo que não
quero cair, quero chegar depressa. E oiço! Respiro a brisa da epifania!
Entendo! Reconheço! Recomeço! Agora caminho na mesma, contudo olho mais à volta,
paro mais, sigo o cantar daquele pássaro, encontro o ninho, vou mais devagar,
mas mais feliz, vi mais coisas, esperei que aparecessem. A caminhada continua e
a tarde também, chego ao destino com 17km nos tornozelos e com uma nova lição. Esta
caminhada tem que se fazer! Olhar para o chão, calcular os passos, uma etapa de
cada vez, mais um desafio, uma subida ingreme, saltar uma poça, evitar cair,
caminhar, caminhar e chegar. Porém, quero lembrar-me do que aprendi com a
estrada para a praia do Bonete, quero olhar para os lados e ver o que se passa
à minha volta e com os que me acompanham, quero parar por eles, parar para
ouvir. Quero olhar para cima, respirar e saber porque é que caminho, relembrar
o porquê e deixar o Como na mão de quem ele pertence.
Não chegámos a ver a praia do Bonete, mas vi o que precisava
para continuar a caminhar.
Leitor imaginário, as caminhadas dão-me para isto, se por
acaso me esquecer do que aprendi, lembras-me? Não quero andar para aí em correrias
de olhos no chão!
Restantes amigos, um abraço e boas caminhadas!
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