A pediatria continua cheia de
porcelanas.
É difícil sair dali sem perder um caco, sem um risco, sem uma
lasquinha na ilustração, o coração sente a fragilidade a que não está habituado.
Mas continuo, insisto nesta jornada que começa na razão da febre e termina na
razão do abandono, do abuso, da injustiça.
Continuo? Vou tropeçando nas histórias,
mas continuo. Vou chorando em sístoles disfarçadas, mas continuo. No entanto,
há dias em que continuar é mais fácil, há pessoas que me empurram para a frente
quando me pesa o choque da injustiça na barriga das pernas.
Trago-vos um destes
empurrões na esperança que caminhemos mais juntos: A Dra. Y, a chefe da
enfermaria, muito simpática, com um sotaque delicioso, com a experiência que muitos
anos de pediatria, num país cheio de assimetrias, foram acrescentando. A manhã
começou com a visita médica, discutimos todos os casos, tiram-se dúvidas, ela
faz perguntas, as respostas vão aparecendo entre silêncios cúmplices. E aparece
a doente X, uma menina linda, pequena e enfezada para a idade, veio sozinha, já
sabe o caminho da sala dos médicos, ela já está internada há muito tempo
(demasiado!). Já está ao colo! Linda, com a trança que as enfermeiras fizeram
e com uma molinha cor-de-rosa no cabelo a segurar a ponta da sonda
naso-gástrica que leva a comida até ao estômago.
Enquanto olho para ela, seguro
as lágrimas que vêm com alegria e tristeza misturadas, vejo uma menina de 3
anos, com o HIV que a mãe lhe ofereceu, com as consequências de quem nunca
tomou bem os remédios do HIV, com um esófago doente que a impede de comer sem
sonda e que até já foi operada, com um atraso na fala, com uma marcha
atabalhoada, mas olhinhos lindos, ela está tão melhor! Então, cheia de charme
com a sua sonda pendurada no cabelo, olha para a médica e aponta para um copo
de plástico, ela não pediu verbalmente, não foi preciso! Rapidamente, esta Dra.
encheu o copo de sumo, contra o protesto dos espetadores: “ Ela vai vomitar,
cuidado, só pode ser pela sonda!”, e respondeu: “ pela sonda não vai sentir o
gosto, criança gosta de sumo, vamos dar só um bocadinho!”. E sentada no colo da
chefe de serviço, a menina da sonda bebeu um golinho de sumo e sorriu (e eu
segurei as lágrimas)! Entre golinhos a Dra. contou a história do fim-de-semana
em jeito de confissão, era Páscoa e todos os meninos tinham chocolates, menos
esta menina (porque o esófago está tão doente que só passa comida pela sonda,
ela vomita tudo, ela está a vomitar há meses), ora isso não é justo, ela é tão
pequenina! Então a Dra. ensinou- a a contar até 15 enquanto lhe deu 15 pedaços
de ovo de chocolate, pela boca, devagarinho, até derreter. Não vomitou, ficou
feliz, e aprendeu a contar!
Depois juntaram-se os outros médicos à conversa e
começaram as histórias que só pessoas assim têm, as vezes em que encomendaram pizza
para os meninos que tinham apenas mais alguns dias de vida, mas que queriam
muito pizza, as comidas especiais, os copos de coca-cola oferecidos aos meninos
que perderam o apetite.
Minutos depois passa o menino XY,
pequenino, magricela e quase transparente da anemia que vai arrastando. Ele tem
uma daquelas febres com 3 meses de evolução que ainda não têm diagnóstico, e se
há coisa que um infeciologista gosta é de uma febre, uma linda febre (“pelam-se
por descobrir o mistério!”), mas também tem falta de apetite e, por isso, está
cada vez mais magro. E a Dra. não foi “de modas”, até porque a estética não é
para aqui chamada, ela perguntou ao menino o que é que ele gostava de comer e
ele responder com uma lista de doces e salgados, tudo coisas que fazem mal. E
agora? Agora, temos uma festa amanhã com direito a salgadinhos e guloseimas,
porque as crianças têm de comer para crescer! A mim calhou-me estudar a febre e
levar bolinhos de queijo (primo da coxinha de frango, mas sem frango).
Leitor imaginário de festa em festa
vou aprendendo pediatria com quem é bem mais do que médico.
Restantes leitores, às vezes
precisamos de um empurrão para continuar a correr, espero que ao lerem este
texto se sintam empurrados para continuar a lutar contra a mesmice. A peregrinação
continua!
Que delicado Bia! Saudades!!
ResponderEliminarReal,bjs dos Felgas.
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