Avançar para o conteúdo principal

Finalmente no Hospital em Vellore!

Tudo o que vejo inunda-me o coração, não consigo parar de observar: a multidão de gente que enche os corredores, as roupas coloridas, a magreza que por aqui abunda, os vários blocos do hospital que é bem maior que o meu aí em casa, os guardas com um apito a direcionar as pessoas e as motas, os estetoscópios ao pescoço sem bata (a bata não lhes assiste?), as senhoras enroladas em Sari brancos (enfermeiras?), cadeiras de rodas, crianças a correr, olheiras fundas (que patologias esconderão?) e mais, muito mais. E aqui assalta-me aquela frase: “ Aquilo que os teus olhos não viram, que os teus ouvidos não ouviram…”.
E de repente, estou à frente do Chefe de Serviço da Infecciologia, um homem sério e educado, depois das apresentações, vieram os pedidos: “ Posso fazer um estágio com vocês para o ano? 3 meses na vossa enfermaria, na consulta? É possível?” Ele respondeu um seco sim, como se fosse a coisa mais natural do mundo, não questionou o facto de eu não falar a língua, não me fez uma lista de exigências, deu-me o cartão dele e disse-me que íamos começar então este processo e que eu era benvinda!  Bom, isto demorou-me algum tempo a digerir, ainda por cima, estava com gastroenterite e as minhas digestões não andavam famosas, mas depois de mastigar, apercebi-me que em 2015 vou viver 3 meses na Índia, a aprender Medicina tropical, entre muitas, muitas outras coisas! Sustos à parte, no fim ainda lhe perguntei se podia dar uma olhadela no Serviço dele, ao que ele respondeu que se eu quisesse podia aparecer na consulta amanha de manhã!

Na manhã seguinte, lá estava eu na consulta, sentadinha num banco ao lado do chefe, pelos vistos em qualquer lado do mundo, interno que é interno senta-se num banquinho, deve haver uma regra internacional contra a associação entre cadeiras e internos.

E os doentes começaram a chegar, consulta de infecciologia, à partida muito familiar para mim, a diferença foi que aqui os doentes estavam mesmo muito doentes. Numa manhã vi tuberculose como nunca tinha visto, disseminada, multirresistente, entranhada e estabelecida, homens, mulheres e miúdos novos, palpei gânglios enormes, massas abdominais, a doença no seu auge!

E, claro, muito HIV, mas estes doentes são tão diferentes dos nossos, nós temos tanto, apercebi-me que só quantificam a carga viral quando as coisas estão a correr muito mal, nós fazemos por protocolo tudo de 4 em 4 meses. Nós mudamos a terapêutica se os comprimidos causam mal-estar, se o colesterol sobe, se os doentes se esquecem das 2 tomas/dia, passamos para um regime de toma diária. Em contraste, triste contraste, eles aqui ainda fazem AZT (por ser muito toxico, é raríssimo fazermos), e os novos fármacos nem vê-los, um dos internos (?) veio discutir com o chefe a terapêutica de um doente, tinha várias resistências, nenhum dos fármacos que estava a fazer tinha eficácia, era preciso iniciar uma coisa nova, o chefe disse que tinham oferecido ao hospital 2 frascos do fármaco necessário o que seria suficiente para 2 meses, depois disso logo se via... Aqui os doentes pagam consultas, internamentos, os medicamentos do HIV… (silêncio). Nós damos, porque acreditamos que é uma questão não só da saúde individual, mas de saúde pública, e damos bem, e assim é que deve ser!

 Vi uma doente com anemia, muita anemia, e arrisquei perguntar, a partir de que valor é que fazem transfusões de sangue, e arrisquei-me a ouvir a resposta : ”Quando passa os 5 g/dl de hemoglobina, às vezes fazemos!” Nós com 7.5g/dl já ficamos arrepiados!

Num bocadinho aprendi tanto, mesmo sem perceber a língua, há coisas que não é preciso saber Tamil (língua local), basta observar! Vi o respeito que todos tinham pelo médico, a roçar a reverência, vi o modo sério e imponente como ele deu às más noticias (e foram tantas, linfomas, carcinomas da vesícula, HIV em falência terapêutica, tuberculose disseminada) e vi-o respeitar o choro dos doentes e familiares, vi o silêncio, o olhar empático, sem salamaleques e palmadinhas nas costas, e suspeito que tenham havido palavras de encorajamento, tímidas mas concisas! Gostei deste médico!

Leitor imaginário, à tarde fui visitar a urgência do hospital, nem imaginas!! Nem eu imaginava o que iria ver e aprender neste dia…. Lá está: “ Aquilo que nem subiu ao coração do homem…”
Então até à próxima, desta vez na sala de reanimação! Um abraço!

Comentários

  1. Bianca és uma Guerreira Valorosa.
    O mundo precisa de mais gente assim, que apesar de todas as limitações, quer ser e fazer com o que tem e com o que sabe. Além do enorme Coração.
    Bjs grandes.
    SCarolino

    ResponderEliminar
  2. Um abraço Sónia, obrigada por estares por aqui!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Deu tudo certo!

A mala está semi-feita, faltam as coisas pequenas, falta fechar, despachar e partir. É bom partir para casa, mas é difícil fechar este ciclo. Atrás de mim ficam as histórias, as pessoas com quem aprendi a ser bem mais que médica, ficam as coisas que só poderia ter vivido num país virado para o sol e para os sorrisos abertos. Elas ficam e vêm comigo no coração, porque a mala já tem excesso de peso, trago o que sou agora e que não era há três meses atrás.  Aliás, essa é a beleza desta experiência, vou provavelmente esquecer-me dos critérios do síndrome hemofagocítico, mas dificilmente da médica que deu chocolate e coca-cola à menina que tinha uma sonda naso-gástrica, dos meninos da enfermaria, dos adolescentes da consulta, isto tudo vai comigo e irá para onde eu for! Escrevo isto com o peito apertado, aquele desconforto na garganta, um incómodo que não sei explicar, no fundo estou ansiosa de chegar e a rebentar de saudades e ao mesmo tempo triste por deixar isto tudo para trás.

Em desembaraço

Passaram 10 meses desde a nossa partida… mais qualquer coisa e damos à luz o nosso burro! E que grande burro é este, com sorte vem às riscas e é uma zebra! Zurrices à parte e sem brincadeiras, realmente o que aqui temos vivido assemelha-se em muito a uma gestação, mas daquelas de risco e com direito a muitos sustos. O início, tal como o primeiro trimestre da gravidez, foi repleto de náuseas e enjoos, as coisas perderam o sabor do costume, a vida sentia-se letárgica e molengona, num arrasto ao ritmo do calor que se fazia sentir neste verão africano. A bem dizer, era deste ambiente não tão agradável que eu precisava para aprender a prestar atenção aos detalhes e ao silêncio. O ruído da vida em Portugal era tal que levei meses a ouvir aquele zumbido característico de quando se sai de um concerto com música muito alta, um tinido interior, constante e rítmico que me lembrava que a vida tinha mudado. Foi então uma espécie de desintoxicação, daquelas beras com ressaca a frio sem direit

A festa, a arca e as moscas!

A jornada continua e a história também. No entanto, hoje a história é outra, o mundo é outro e eu sou outra noutro mundo! A necessidade de deixar um registo escrito deste período da vida é mais profunda do que visceral, vem da carcaça… dos ossos… da estrutura do esqueleto! Não conseguindo prever o que aí vem, tenho a certeza que será uma viragem no rumo de todos nós e de tudo em nós. Por isso, obriguei-me a sair do buraco da inércia e aqui estou à mercê de quem por aqui passa, e a jeito para futuras leituras retrospetivas que espero que tenham mais lucidez do que o momento presente. A vida aqui pelo Reino de Eswatini corre com uma normalidade tosca de quem vai à festa de vestido roto com sapatos de verniz. Temos poucos casos e à data apenas um morto, na última semana os casos aumentaram 1 -2 por dia, nada comparável às outras tragédias. Porém, o número de testes feitos deixa muitas dúvidas, só esta semana é que começaram a fazer testes no laboratório nacional, anteriormen