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Diga 33...


Ontem fiz 33 anos. 

Já são uma data de anos. Idade para ter juízo... diriam alguns! 
E é de juízo que quero falar hoje. Há que parar e olhar para os anos que passaram e julgá-los, inquiri-los, medi-los e seguir em frente com a sentença. Partir a caminho dos 34 rumo à eternidade com a mala cheia das recolhas e das partilhas, das verdades aprendidas a custo e às cabeçadas, das marcas deixadas por uns e em outros.  Não sei se foi do clima quente e húmido dos últimos meses, se do silêncio, se das mudanças ou, muito provavelmente, todos estes fatores construíram o ecossistema perfeito para que estes 33 anos de ontem fossem especiais.

Ao olhar para o ano que passou sinto a diferença daquilo que era e daquilo que agora sou. Como se o paradigma tivesse mudado, de repente, trocaram-me a etiqueta. E que troca tão dolorosa, ao puxar arrancaram tanto que o outro tanto ficou à mostra. 
Quando cheguei a África era médica, mais até, era infeciologista, era isso que eu era e que queria ser, vim para aqui para contribuir com isto. O cumprir dum sonho, trabalhei a vida toda para chegar aqui e ser médica em África, este era o fim de tantos, tantos meios. Mas o inesperado aconteceu! A burocracia africana aconteceu! Conseguir uma licença profissional neste país revelou-se uma tarefa bem mais desgastante e longa do que o planeado. 
E foi aqui que puxaram a etiqueta que trazia ao pescoço (ou seria à porta do coração?). Não poder ser médica, não ir todos os dias para o hospital, não fazer urgência uma vez (duas…três…) por semana, tirou-me mais do que aquilo que deixou, por vezes, fiquei sem ar, sem chão, sem rumo. Fui treinada (moldada?) para ser médica, resolver a febre, decidir o esquema terapêutico, preparar a alta, rever na consulta, responder às emergências, estudar a última evidência e sentir-me sempre culpada, sempre insuficiente, porém contente e realizada na dose mínima para continuar a correr. Uma maratona que começou quando entrei na primeira classe com 5 anos e terminou em março deste ano com o exame final da especialidade aos 32 anos. 
Foram 27 anos neste comboio com tempo suficiente para colar, engolir e entranhar a etiqueta. Então se não sou médica, sou o quê? 
As perguntas são sempre o primeiro passo.
As respostas vieram em solavancos, às vezes com enxurradas de dúvidas e solidão, outras vezes com um céu azul de novas descobertas. Ficar em casa a tomar conta dos meus bebés enquanto aguardo que alguém abra uma gaveta empoeirada e espete um carimbo na minha cédula foi o catalisador desta nova fase.

Aqui estou eu, médica especialista, altamente diferenciada em HIV no país com mais HIV do mundo, dedicada em exclusivo a limpar cocós e ranhocas, fazer sopa e panquecas de aveia, intervalando o meu tempo com a resposta à urgência de pô-los a fazer a sesta a horas de modo a evitar desfechos indesejados, nomeadamente, gritaria, amuos e mau feitio a tarde inteira. Dias e noites disto… sem interrupções, sem saída de banco, meia dúzia de centímetros de gente e tanta, mas tanta necessidade de atenção, e eu aqui só com duas mãos e meia chávena de paciência.

No meio deste palheiro encontrei a agulha que aponta o Norte, ganhei rumo, apesar da falta de visibilidade, descobri que não precisava da etiqueta, o valor é intrínseco, não está sujeito às tabelas e à inflação. Ser basta, não preciso de provar nada, apresentar trabalho, cumprir metas, ganhar pontos, posso só Ser eu, uma pessoa que por acaso é mãe, esposa, médica… Assim escrito parece óbvio, mas é tão mais fácil enfiar a etiqueta e entrar num comboio. O desafio de ser apenas e aprender a parar de correr atrás do vento é antigo, mas abalroou-me agora. Foi isto que este ano trouxe, uma reflexão sobre identidade, sobre o valor intrínseco e absoluto, gravado em cada um de nós sem necessidade de outras classificações. 
Fica aqui, nas nossas mãos, o registo desta epifania, para vermos a vida com um coração menos míope e com menos autocolantes.

Leitor imaginário, obrigada por continuares a fazer parte desta peregrinação, restantes leitores benvindos a esta casa que está em constante desarrumação.

Comentários

  1. Quando tiveres de fazer mais uma panqueca ou limpar mais um coco lembra-te de todas as mães da Europa ou mais em concreto de Portugal que continuam a lutar para serem mais mães do que médicas, enfermeiras, auxiliares,advogadas...um papel no fundo de uma gaveta e uma bênção.. Beijinhos

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  2. Sónia!! Um grande abraço! Lembrar-me que isto é um privilégio e não um castigo é uma luta...mas estamos cá para isso!!

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  3. Força minha querida, segue em frente porque Deus é contigo, bjs

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