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Quando falta o relógio…

Leitor imaginário, hoje a propósito do dia Mundial do VIH/SIDA resolvi interromper o silêncio a que nos habituei nos últimos meses e volto aqui, às nossas conversas, às histórias, às desconstruções… à jornada.

Trago-te um texto que escrevi algures em Agosto, depois engavetei-o e ali ficou, hoje achei que devia soprar-lhe o cotão e deixar-me de peneiras literárias, então aqui o tens recortado e colado com um desabafo de hoje, mais uns pozinhos dos últimos meses e umas memórias antigas que ainda ardem.

Há muito para dizer sobre a epidemia do VIH/SIDA, é uma história de grandes avanços científicos, recheada de vitórias impensáveis a outras gerações, uma caminhada de sucessos. Porém nos entretantos, houve muitos que foram ficando para trás, conheci uns quantos e trago alguns marcados para sempre na memória. Ela tinha 28 anos (a mesma idade que eu naquela altura) quando chegou à enfermaria já vinha condenada pelo linfoma e a SIDA que trazia, fizemos-lhe o diagnóstico e, infelizmente, não havia mais nada a oferecer, foram 3 dias e no último sentei-me com ela e perguntei-lhe se se queria despedir de alguém … ligou ao filho de 5 anos… e partiu. (Silêncio). Ele era o homem do lixo e tinha dores nas costas, teimoso e irredutível, quando finalmente decidiu tratar-se já não foi a tempo. Ele era novo, nos trintas talvez, não queria saber da doença porque tinha a vida pela frente, veio por outra coisa e ficou internado, simpático, educado, amado pela família, meses depois já não cá estava. Ele morreu na Unidade de Cuidados Intermédios, asfixiado por uma doença que ignorou durante anos, na mesa de cabeceira tinha um pequeno livro com a história do filho pródigo um bocadinho de esperança deixado por um amigo.

Houve muitos outros, mortes feias e malcheirosas, jovens, por vezes, com muito sofrimento e sempre com aquela sensação de que podia ter sido diferente. Nos tempos que correm não há necessidade de morrer por causa do VIH, ainda não temos uma cura definitiva, mas a terapêutica é muito eficaz no controlo da doença. Se os doentes tomarem a sua medicação, morrerão certamente (uma das poucas certezas existenciais), mas a grande maioria, não será por causa do VIH. Contudo, há tantas razões para não tomar a medicação, o medo, o preconceito, a negação, o estigma social, e até a incapacidade cognitiva e/ou emocional… tantas nuances que tornam um assunto linear numa consulta bastante complicada.

E depois há o outro lado do mundo… que agora é o meu! Vou abrir a janela e deixar-vos espreitar uma das primeiras consultas de VIH que fiz na Suazilândia. À minha frente uma adolescente de 12 anos (que veio sozinha ao médico), ao olhar para as últimas análises vejo que tem uma carga viral altíssima o que significa que não anda a tomar os seus medicamentos. Lá vou eu para cima dela de dedo apontado à necessidade de sermos responsáveis pela nossa saúde e de entendermos a importância da medicação e os perigos da progressão da doença. Ela tem 12 anos! Acaba por confessar que, às vezes (muitas), esquece-se da medicação porque tem de a tomar de 12 em 12h, mas como não tem um relógio em casa e nem sempre os vizinhos estão por perto, não sabe a que horas deve tomar os medicamentos e acaba por não os tomar. (Silêncio) O relógio é o que ela menos precisa, o que lhe falta é um adulto que a lembre das horas, um adulto que lhe dê uma alimentação adequada para que ela passe dos 20kgs e não aparente 7 anos em vez de 12, uma família que sirva de suporte é o que ela precisa para fazer frente ao VIH que a mãe lhe ofereceu. Entretanto, chamei a assistente social que se prontificou a ajudar e a avaliar a situação e, pelo menos, foi para casa com um relógio e uma caixa grande de ovos (doados por uma empresa local), voltará daqui a um mês para reavaliação.

Esta é uma de muitas crianças com VIH herdado das mães, infeção evitável e que carregarão a vida inteira, sujeitas a tomar medicamentos todos os dias até que alguém descubra uma cura. O VIH pediátrico é pouco apelativo para a inovação científica, há cada vez menos crianças com VIH (ainda bem!), mas isto também faz com que haja desinvestimento na investigação, fazendo com que muitas destas crianças tenham de tomar 4 e 5 comprimidos duas vezes por dia, todos os dias, algumas delas ainda muito pequeninas e com muita dificuldade em tomar comprimidos, imaginam? Vi um rapazinho que tinha 7 comprimidos para tomar de manhã e 5 à noite, uma confusão de frascos e de horários numa família com pouquíssima literacia a viver em condições muito precárias. Aqui as crianças morrem de VIH, porque ninguém lhes deita a mão, faltam os relógios, faltam as mães, faltam xaropes e comprimidos uma vez ao dia… E este texto vem na sequência desta falta, porque falar de VIH é lembrar as histórias, os sucessos e as insuficiências.

Leitor imaginário, no meio da falta de tantas coisas, foi por histórias destas que agarrámos em nós e nos miúdos e viemos viver para o fim do mundo, quero fazer a minha parte, ser uma parte ínfima da resposta, sem pretensões de salvar meio mundo da pobreza ou do VIH, mas com o objetivo de me partilhar enquanto a peregrinação acontece. 

Um abraço para quem passou por aqui, e sempre bom caminhar com companhia.

Comentários

  1. Olá, feliz por ler a descrição e infeliz com a realidade de alguns países . Vem-me à memória a minha experiência na Etiópia, quando lá estive há 2 anos, a dar aulas a alunos de mestrado em Addis Ababa. Os dirigentes tentam lutar contra o VIH que afecta muitos. Têm 100 milhões da habitantes, com 82 tribos, que falam várias línguas e apesar do Amharic ser a língua oficial é difícil passar a informação a todos. Nas feiras e mercados vemos tendas brancas à entrada a fornecer informação e kits. Nunca me tinha passado pela cabeça que fosse um problema tão grave. Pequenos passos preventivos podem ajudar
    mas há um longo caminho a percorrer em muitas áreas do desenvolvimento. Tinha alunos
    que iam fazer teses de mestrado em 'Gestão e desenvolvimento', 'Gestão e Género', 'Gestão e Liderança', para além de 'Teologia', porque dei aulas na Ethiopian Graduate School of Theology. Esses alunos são o motor da mudança: alguns já desempenhavam funções como pastores, engenheiros, assistentes sociais, funcionários públicos, etc. Há estradas, até uma mini autoestrada mas não há carros. Há blocos de apartamentos nos arredores de Addis mas não há transportes públicos para lá chegarmos. Há uma grande mudança a acontecer e se voltasse 2 meses depois veria uma diferença. O problema é que a mudança mais intrínseca, as mentalidades, vai demorar muito tempo. Qualquer ajuda, contribuição para essa mudança é uma grande ajuda. Obrigada pelo vosso trabalho e pela partilha. Beijinhos

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  2. Novamente, consigo... O seu trabalho, aí, é aquele que tem que ser realizado. Abençoada seja! Já reparou nos milhares de mulheres que não podem pronunciar-se acerca do facto de terem auxiliado, profundamente, alguém? O seu trabalho, como todos aliás, é louvável. Mas no que concerne à temática do HIV, que afinal é a deste momento, deve sentir-se em construção plena de uma mulher inteligente, sensível, bondosa, humilde e com sabedoria. Esse é o seu Caminho... Felicidades!

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