Avançar para o conteúdo principal

A festa, a arca e as moscas!

A jornada continua e a história também.

No entanto, hoje a história é outra, o mundo é outro e eu sou outra noutro mundo!
A necessidade de deixar um registo escrito deste período da vida é mais profunda do que visceral, vem da carcaça… dos ossos… da estrutura do esqueleto! Não conseguindo prever o que aí vem, tenho a certeza que será uma viragem no rumo de todos nós e de tudo em nós. Por isso, obriguei-me a sair do buraco da inércia e aqui estou à mercê de quem por aqui passa, e a jeito para futuras leituras retrospetivas que espero que tenham mais lucidez do que o momento presente.

A vida aqui pelo Reino de Eswatini corre com uma normalidade tosca de quem vai à festa de vestido roto com sapatos de verniz. Temos poucos casos e à data apenas um morto, na última semana os casos aumentaram 1 -2 por dia, nada comparável às outras tragédias. Porém, o número de testes feitos deixa muitas dúvidas, só esta semana é que começaram a fazer testes no laboratório nacional, anteriormente tinham de ser enviados para a África do sul. Mas, já estamos em quarentena nacional que acabou de ser renovada por mais 3 semanas, escolas e empresas fechadas e porrada para quem anda na rua sem motivo. Desinfetantes em todo o lado e agora até as máscaras são recomendadas. 

Cá estamos nós de sapatinhos novos de verniz a brilhar, os pés apertados com a economia estrangulada, a dor do mindinho de quem ganha ao dia e não trabalha há um mês, o saco da farinha de milho a acabar e os miúdos com fome e sem escola. A acompanhar levamos um vestidinho roto que veio das primas, um sistema de saúde a rebentar pelas costuras, hospitais a ameaçar fechar por falta de trabalhadores com as enfermeiras em greve com medo de morrer sem material de proteção. E a festa a começar…. E nós nem ensaiámos a dança! E que rodopio que isto vai ser. Em todas as conversas que tive e em todos os artigos que li a opinião é unânime, esta pandemia vai arrasar África, as populações mais desprotegidas vão sofrer a infeção e a pobreza, a insuficiência a todos os níveis. Doença, fome, crime e mais pobreza. Esta é a previsão dos entendidos… este é o cenário que aguardamos.

Decidimos ficar por cá mesmo assim, mesmo depois de ver a maioria dos nossos amigos estrangeiros irem embora, as ONGs a fecharem, a ajuda internacional a reduzir em muito a sua ação, e, por fim, a fronteira a fechar. Não há masoquismo, nem heroísmo, e a loucura que há é a necessária para dar sabor à vida e criar duas crianças. Ficámos porque quando, há uns anos atrás, decidimos prepararmo-nos para viver num país de baixa renda e em 2019 escolhemos este reino para viver, já sabíamos que se tivéssemos um acidente e precisássemos com urgência de um neurocirurgião não teríamos, nem tão pouco alguém para ler as imagens da TAC dos 3 ou 4 aparelhos que existem no país, ou se precisássemos de um pediatra intensivista… ou tantos outros meios que aqui não estão disponíveis. E viemos na mesma e então ficamos na mesma, até porque mais do que nunca agora a necessidade é gritante.

Contudo, nem todo a gente ouve o grito. Aquela senhora que vive no fim do mundo da Suazilândia, numa casa de lama com telhado de palha, analfabeta, a sustentar os 6 filhos que os maridos lhe deixaram, ainda não percebeu o risco deste vírus. O isolamento social numa cabana sem casa de banho, sem água corrente e sem eletricidade, não lhe deu para começar a fazer pão com fermento natural. Como o jovem operário que vive no subúrbio numa correnteza de quartos numerados a tinta branca com uma casa de banho comum na ponta, perturbadoramente semelhantes a um curral de porcos. Ora, lavar as mãos num balde numa casa de banho partilhada e cumprir distância social numa casa com 6 moradores e uma divisão pode ser um desafio difícil de cumprir. Mas a surdez é generalizada. O empresário que vê o negócio afundar, as famílias com filhos que só querem que a escola comece, os hotéis vazios, as obras paradas, tudo isto grita e desafina, e pode roubar a atenção à tragédia que aí vem. Os poucos casos que temos podem fazer-nos pensar que estamos noutro gráfico, mas a nossa curva ainda agora começou. E por isso, há que começar a trabalhar no sentido de evitar o pior e minimizar o sofrimento. Há que ganhar tempo e aprender com a experiência dos outros. 

É isto que me faz sentir numa espécie de Arca de Noé, estamos a construir um barco em terra seca porque vem aí uma tempestade, mas nunca choveu na terra e está um sol radioso. Então lá ando eu a pregar tabuinhas na barcaça, e não, não tenho aspirações de ser Noé nesta analogia, sou aquele tipo que estava na tasca logo pela manhã a ver se desenrascava um biscate e o Noé lá me contratou e aqui fiquei a trabalhar ao sol enquanto imagino como seria se esta tempestade fosse mesmo a sério. Se isto for a sério então temos (nós e a ONG onde o A. trabalha) de pensar como é que vamos tratar as crianças dos nossos orfanatos, as pessoas dos centros de reabilitação, como é que vamos ajudar as famílias das áreas rurais que acompanhamos há anos. E assim vou pregando tabuinhas e pregando a lavagem das mãos e a distância social, enquanto aconselho toda a gente a começar uma horta e a comprar mais mercearias, porque avizinham-se dias de muita insegurança alimentar. Estratégias para minimizar as mortes. Estratégias para consular o luto. Armazenar comida, material e esperança. Mobilizar a sociedade civil porque todos são essenciais nesta luta. Tudo isto enquanto o sol ainda brilha e tudo está, aparentemente, bem. Voltando à arca, há dias em que me sinto como aquela pessoa que Noé mandou ao quintal recolher as formigas (uma de cada) ou as minhocas, ou melhor, as moscas e estou neste momento a ver se consigo levantar-lhes a asa para espreitar se levo no saco uma de cada ou tenho de continuar à procura.
Foi para isto que viemos… e é para isto que cá ficamos!

Leitor imaginário junta-te a nós, aqui podes aproximar-te em segurança. Restantes leitores, é sempre um prazer ter-vos por cá, sentem-se que a cadeira está desinfetada.

Comentários

  1. Porque o Reino de Deus é feito por pessoas com o coração disponível para servir. Obrigada por estarem a fazer diferença onde estão, que busquem sempre a vontade de Deus para cada momento para que possa ser essa a vossa fonte de força e segurança. Não estão sozinhos!! Beijinhos
    «Por tal motivo, nunca mais deixámos de orar por vós, desde o dia em que soubemos tudo isso. Pedimos a Deus que vos dê o pleno conhecimento da sua vontade, concedendo-vos toda a sabedoria e entendimento que vem do seu Espírito. Desse modo, poderão viver segundo a vontade do Senhor e fazer o que lhe agrada, praticando sempre o bem e crescendo no conhecimento de Deus. Pedimos ao nosso Deus que vos torne firmes e constantes pelo seu poder glorioso, para que possam suportar tudo com paciência e alegria.»
    ‭‭COLOSSENSES‬ ‭1:9-11‬ ‭BPT09‬‬

    ResponderEliminar
  2. T espero que Deus vos esteja guardar de todo o mal. Beijinhos

    ResponderEliminar
  3. Não nos conhecemos pessoalmente, mas temos amigos dedicados em comum.
    Queremos compartilhar algumas palavras de Jesus:
    ..."não estou sozinho porque o Pai está comigo.
    Digo-vos estas coisas, para que em Mim, vocês tenham PAZ. No mundo vocês passam por aflições; mas sejam corajosos: EU venci o mundo!"

    ResponderEliminar
  4. Não nos conhecemos (sou a mãe da Xuxa) , mas a escrita revela o Ser. O que faz, aí, é louvável, o que teme e o que receia é humano. O Caminho com pedras auxilia o indivíduo a crescer e a saber ser e estar, neste mundo consigo e com os ouros, onde nada é equitativo e plausível. Deus protege-a e aos seus.

    ResponderEliminar
  5. Não nos conhecemos (sou a mãe da Xuxa) , mas a escrita revela o Ser. O que faz, aí, é louvável, o que teme e o que receia é humano. O Caminho com pedras auxilia o indivíduo a crescer e a saber ser e estar, neste mundo consigo e com os ouros, onde nada é equitativo e plausível. Deus protege-a e aos seus.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Deu tudo certo!

A mala está semi-feita, faltam as coisas pequenas, falta fechar, despachar e partir. É bom partir para casa, mas é difícil fechar este ciclo. Atrás de mim ficam as histórias, as pessoas com quem aprendi a ser bem mais que médica, ficam as coisas que só poderia ter vivido num país virado para o sol e para os sorrisos abertos. Elas ficam e vêm comigo no coração, porque a mala já tem excesso de peso, trago o que sou agora e que não era há três meses atrás.  Aliás, essa é a beleza desta experiência, vou provavelmente esquecer-me dos critérios do síndrome hemofagocítico, mas dificilmente da médica que deu chocolate e coca-cola à menina que tinha uma sonda naso-gástrica, dos meninos da enfermaria, dos adolescentes da consulta, isto tudo vai comigo e irá para onde eu for! Escrevo isto com o peito apertado, aquele desconforto na garganta, um incómodo que não sei explicar, no fundo estou ansiosa de chegar e a rebentar de saudades e ao mesmo tempo triste por deixar isto tudo para trás.

A aventura continua… por terras indianas

Os primeiros dias foram cheios de adaptações umas mais dolorosas do que outras,mas todas cheias de um encanto que não estava à espera de encontrar… um dia destes explico-vos isto melhor! Começámos por perceber como é que o centro funciona, que actividades é que existem, quem é que é o responsável pelos vários departamentos e depois veio a pergunta essencial: “Então, onde é que podemos ajudar?” e a resposta veio rápida e certeira e num instante transformou- se em várias actividades e responsabilidades, afinal não viemos passear… Graças a Deus! O André ficou com os rapazes que estão no programa de recuperação da toxicodependência, vai estar perto deles, vai aconselhá-los, e vai ensinar-lhes algumas competências pessoais e sociais usando princípios bíblicos (as famosas aulas do Desafio Jovem). Ah, e acrescentar a isto, ele também anda a pensar em construir um forno, para que se possa fazer pão aqui no centro e assim poupar dinheiro. Eu, por outro lado, não fiquei com nenhuma área específi

Viemos!

Passaram quase dois anos desde a última vez que escrevi aqui. Tinha saudades! Pensei em voltar várias vezes, mas por alguma razão esta vontade de escrever só ganha mãos e vírgulas em clima tropical! Então, aqui estou eu e espero que tu, querido leitor imaginário, não tenhas desistido! Escrevo sentada na mesa da cozinha da casa nova, uma mini casa no ainda mais pequeno país do continente Africano: Suazilândia ou como se diz agora o Reino de Eswatini. A primeira vez que ouvi falar nele tive de ir ao google para o encontrar, uma bolinha minúscula entre a África do Sul e Moçambique, a única monarquia absoluta do mundo, um reino pacífico e de boa gente. O país do mundo com a maior incidência de infeção por VIH/SIDA, um terço da população, fizeram um estudo em que estimavam que, se o ritmo da epidemia continuasse, em 2050 deixaria de haver habitantes no país. No entanto, muito tem sido feito para melhorar estes números. O desafio é gigantesco e todas as mãos são pequeninas e to