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Ainda a procissão vai a meio…


Falta metade! E é caso para dizer o pior já passou. Esperemos!

O dia alongou-se, cheguei ao hospital às 8h e vim no autocarro das 19h30, um dia destes habituam-se e ainda me metem a fazer urgências de 24h. Por falar nisso, tenho umas certas saudades de fazer urgência, saudades da equipa, das loucuras da sala de reanimação, saudades de estar em casa (o hospital também conta como casa, uma espécie, um sótão!).

A viajem para casa foi gira, já tinha escurecido e a cidade transformou-se. Sentadinha no banco do autocarro, entre solavancos, assisti em “primeira classe” ao espetáculo noturno, as famílias cá fora, as barraquinhas de comida apinhadas de gente, homens a beber chá na beira da estrada, veículos de todos os tamanhos e cores em cima uns dos outros, luzes coloridas penduradas sem preocupação aos cantos, nos toldos, onde houve lugar, a música estridente e alegre, as buzinas de vários timbres, eu… e um sorriso estampado. Os pensamentos voam, lembro-me do dia que passou, tão cheio e bom (!).

Começou com a visita médica à enfermaria, lá vamos nós cama a cama discutir diagnósticos, confirmar a história com a família que está sempre lá e não arreda pé do lado do doente, palpar as barriguinhas à procura de baços e de fígados, revemos radiografias, confirmamos suspeitas.
Aprendo sempre tanto! 
Apesar do calor que começa pela manhã, das muitas escadas, da azia que me acompanha, do sono que pesa nos olhos e daquela sensação de que não sei o que devia saber, devia estudar mais, tenho de estudar mais, sentimento que rói as entranhas e as confianças e que me faz hesitar as respostas que estão à porta da língua e que roídas e encolhidas voltam para dentro. Apesar! Agora é mais fácil! Tenho menos medo de errar, pergunto mais, postulo, discordo, digo piadas (Tento! O inglês é uma língua muito insípida.) e aos bocadinhos esta casa também vai sendo minha.   

 E o espanto mantem-se! E o sorriso também! Muito se aprende aqui! Muita infeção, muita meningite tem esta gente, não é só a doença é a história que espanta. No outro dia, a filha a contar as alterações neurológicas da mãe, refere que a senhora veio para o hospital porque comeu cocó (!), não vá o médico não perceber a gravidade da situação. E o outro que foi com a vaca ao veterinário para as vacinas, o bicho assustou-se deu um coice, o dono caiu e dias depois estava já cheio de febre e de infeção, mas o problema dele foi a vaca, não foi o VIH que ele andava a passear aos anos! Pobre vaca! Os insólitos! A Índia!

Dou comigo com o tal sorriso estampado, enquanto me passeio neste hospital gigante que tem guardas com apitos a direcionar pessoas e os carros, e lembro-me do privilégio e apesar de peganhenta e com fome, sorrio!

Depois chego ao escritório onde nos últimos dias me tenho dedicado à ciência, bela ciência esta de pôr dados numa folha de Excel, mas é assim que se constrói um bocadinho, uma colherzinha de ciência e um nome numa publicação internacional.
Enquanto estou de olhos em bico a registar biópsias surge um convite para dar uma aula aos alunos de medicina do terceiro ano e lá vou eu, ver como corre, e vejo o doente com eles, aconselho a não ter medo de tocar, a olhar nos olhos, a ouvir, a prestar atenção aos detalhes, a pele, a marcha, o pulso… Por momentos, lembro-me das minhas primeiras excursões pela enfermaria em Santa Maria, que medo, que estranho, a ideia impossível de acabar um curso interminável. Agora, pouquíssimos anos depois, num sítio improvável ensino a tocar no doente como aquele professor imponente me ensinou, e assim passo o testemunho aos jovens médicos que serão, quem sabe, médicos no nenhures da Índia. O sorriso volta e veio para ficar. Que bom, esta ideia de ter contribuído com um grãozinho na construção destes novos médicos, que privilégio!

Volto à cadeira e ao Excel e muitos dados depois são horas do autocarro, hoje até enquanto atravesso a estrada o que é sempre assustador, penso no tal privilégio e não consigo deixar de sorrir!

Leitor imaginário, de grão a grão vou enchendo o papo de sorrisos! (e de papaias… que boas papaias!)

Leitores que por acaso ou convicção foram apanhados por aqui, um abraço para todos, espero que estes grãos também vos ajudem nas vossas obras. 

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