Avançar para o conteúdo principal

Passou um mês!

Passaram muitas coisas. Todos os dias há uma avalanche de sentimentos que destrói, destrói e depois constrói, todos os dias. A Índia é um sítio difícil para viver! Demasiado calor, demasiado pó no ar, há picante em tudo o que está no prato, buzinadelas constantes e ensurdecedoras e há a diferença e a distância cultural. Não é mau, é diferente!

Ainda agora, 5 minutos antes de começar a escrever, enquanto estou sentada à espera do médico para irmos ver os doentes, está um homem em pé a 1 metro de distância de mim, a olhar-me fixamente nos olhos, tempo suficiente para eu reparar, olhar rapidamente para confirmar, baixar o olhar e pensar: “O que é que acontece se eu fizer o mesmo?” E olhei para ele olhos nos olhos… A ver quem ganha! Depois de segundos que pareceram largos minutos ele desviou o olhar, e eu pensei: “Desconfortável, não é? Toma lá que é para aprenderes!” Mas afinal aprender o quê? O conceito de espaço pessoal? É tão diferente! É tudo tão diferente! Estas diferenças que até são engraçadas com o tempo custam, pesam, irritam… Cansam!

No entanto, depois olho à volta e lembro-me do privilégio. O que é que este projeto de infeciologista está a fazer neste subúrbio indiano? Este sonho de ser relevante, este desejo de justiça e a vontade visceral de contribuir trouxeram-me aqui. Então entre tropeços e saltinhos de alegria vamos andando. Andando e agradecendo pelo privilégio, mesmo nos dias difíceis.

A semana passada foi difícil! Morreu um menino de 17 anos, o primeiro caso de raiva humana que vi. Fizemos tudo, cuidados intensivos, protocolos experimentais, tudo. A raiva mata quase sempre, mas falta o quase, e a esperança estava lá no quase, durou 24 dias e depois já não havia quase (silêncio). A família recebeu a notícia com tanta tristeza, tanta que nem a minha falta de Tamil me impediu de ver, poucas lágrimas, sentidas, profundas, eles já não tinham “quase” e eu quase que chorei ali com eles.
Uns dias antes, partiu um amigo, daqueles que são família, e eu estava aqui e eles estavam aí (vocês?). E ao telefone, tanto telefone, a distância tão grande e eu tão pequena com o coração minúsculo, espremido, apertado, destruído. E, mais uma vez, quase chorei com eles (quase?).

Mas hoje pela manhã, uma brisa surpreendentemente fresca lembrou-me que depois da destruição deve vir a construção. Que venha! Venha e fique por cá!

Então, hoje, neste dia cheio de Índia em que continuo à espera do tal médico, com fome, azia e 3 dedos de frustração, hoje… Mãos à obra! A vida é curta e já começou. Que venha a Índia, que venha e de caminho traga uns óculos para a miopia que teima em permanecer.

Leitor imaginário, hoje ficamos assim, a ver se um dia percebemos estas índias.

Restantes leitores, um abraço com saudades vossas!

Comentários

  1. A alegria do Senhor é a tua força!!! Keep going! Deus está contigo e continua a capacitar-te :)

    ResponderEliminar
  2. Lembramo-nos muito de ti nesta nossa vidinha rotineira... É bom ler-te e conseguir experimentar um bocadinho do que estás a viver! Força... Domingo leio-te no chat da igreja online... Beijinhos dos Enios
    Ontem o Tiaguinho deu por falta da tia Bianca no grupo :)

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Deu tudo certo!

A mala está semi-feita, faltam as coisas pequenas, falta fechar, despachar e partir. É bom partir para casa, mas é difícil fechar este ciclo. Atrás de mim ficam as histórias, as pessoas com quem aprendi a ser bem mais que médica, ficam as coisas que só poderia ter vivido num país virado para o sol e para os sorrisos abertos. Elas ficam e vêm comigo no coração, porque a mala já tem excesso de peso, trago o que sou agora e que não era há três meses atrás.  Aliás, essa é a beleza desta experiência, vou provavelmente esquecer-me dos critérios do síndrome hemofagocítico, mas dificilmente da médica que deu chocolate e coca-cola à menina que tinha uma sonda naso-gástrica, dos meninos da enfermaria, dos adolescentes da consulta, isto tudo vai comigo e irá para onde eu for! Escrevo isto com o peito apertado, aquele desconforto na garganta, um incómodo que não sei explicar, no fundo estou ansiosa de chegar e a rebentar de saudades e ao mesmo tempo triste por deixar isto tudo para trás.

A aventura continua… por terras indianas

Os primeiros dias foram cheios de adaptações umas mais dolorosas do que outras,mas todas cheias de um encanto que não estava à espera de encontrar… um dia destes explico-vos isto melhor! Começámos por perceber como é que o centro funciona, que actividades é que existem, quem é que é o responsável pelos vários departamentos e depois veio a pergunta essencial: “Então, onde é que podemos ajudar?” e a resposta veio rápida e certeira e num instante transformou- se em várias actividades e responsabilidades, afinal não viemos passear… Graças a Deus! O André ficou com os rapazes que estão no programa de recuperação da toxicodependência, vai estar perto deles, vai aconselhá-los, e vai ensinar-lhes algumas competências pessoais e sociais usando princípios bíblicos (as famosas aulas do Desafio Jovem). Ah, e acrescentar a isto, ele também anda a pensar em construir um forno, para que se possa fazer pão aqui no centro e assim poupar dinheiro. Eu, por outro lado, não fiquei com nenhuma área específi

Quando falta o relógio…

Leitor imaginário, hoje a propósito do dia Mundial do VIH/SIDA resolvi interromper o silêncio a que nos habituei nos últimos meses e volto aqui, às nossas conversas, às histórias, às desconstruções… à jornada. Trago-te um texto que escrevi algures em Agosto, depois engavetei-o e ali ficou, hoje achei que devia soprar-lhe o cotão e deixar-me de peneiras literárias, então aqui o tens recortado e colado com um desabafo de hoje, mais uns pozinhos dos últimos meses e umas memórias antigas que ainda ardem. Há muito para dizer sobre a epidemia do VIH/SIDA, é uma história de grandes avanços científicos, recheada de vitórias impensáveis a outras gerações, uma caminhada de sucessos. Porém nos entretantos, houve muitos que foram ficando para trás, conheci uns quantos e trago alguns marcados para sempre na memória. Ela tinha 28 anos (a mesma idade que eu naquela altura) quando chegou à enfermaria já vinha condenada pelo linfoma e a SIDA que trazia, fizemos-lhe o diagnóstico e, infelizmente, nã