Avançar para o conteúdo principal

A viagem continua…

O nosso tempo em Bombaim acabou! Foram 2 meses. Inesquecíveis! Cheios de histórias e de aprendizagens, uma mistura de aventura e de peregrinação com uma montanha gigante de sentimentos atrelados. O que aprendemos aqui vai ficar guardado no coração (como ensina a história do Natal), contudo, muito provavelmente, só daqui a alguns meses é que teremos a consciência do tamanho da montanha que vamos ter de arrumar!

Tivemos a oportunidade rara de estar na Índia dos Indianos e não das agências de viagens e dos hotéis de luxo. Comemos à mesa deles, o arroz branco sem tempero, com dall (uma espécie de molho de lentilhas) e legumes picantes, todos os dias excepto ao domingo que é dia de comer frango (dia de festa!).

Andámos de transportes públicos como eles e com eles ao nosso colo, sem exagero nenhum, num daqueles triciclos motorizados onde cabem 7 passageiros, andámos quase sempre com cerca de 18-20 pessoas. No autocarro num banco de 2 vão 3, isto é de certeza e com sorte vão 4. E no comboio? Este é indescritível, vocês têm de experimentar! A viagem de comboio entre a cidade onde estávamos e Bombaim é de mais ou menos 1h45 min. A “piada” da viagem reside no facto do comboio ir tão cheio que as pessoas (incluindo nós) para conseguir entrar têm de usar a força, leia-se empurrar, dar uns quantos murros e nunca desistir de fazer força para a frente, porque enquanto uns estão lutar para entrar, outros estão a lutar para sair, e não, não há respeito, nem organização, nem filas… duas mãos a empurrar e para a frente é que é caminho!

A propósito desta “tradição” indiana, desenvolvemos uma estratégia de sobrevivência, o André vai à frente a empurrar e a abrir o caminho, eu fico atrás dele, a mala fica entre nós, e depois, com uma mão seguro na mala e com outra no André e aconteça o que acontecer nunca desisto de segurar nem uma coisa nem “outra”. Numa destas brincadeiras, uma vez a regressar de Bombaim, o comboio estava tão cheio que além de ter sido quase impossível entrar, no meio da confusão, não sei bem como senti o chinelo a saltar-me do pé. Nesse mesmo instante, olhei para trás e vi uma pequena multidão de gente, à minha frente uma grupo bem maior já dentro do comboio ao estilo das sardinhas enlatadas… a decisão era clara, ou volto para trás e tento encontrar o chinelo no meio daquela gente toda e claro, perco o comboio; ou empurro 3 ou 4 indianos entro no comboio e perco um chinelo… bom, chinelos há muitos! - já dizia o outro. E assim foi, entrei no comboio a abarrotar de gente, com um calor que não se podia e com um chinelo a menos… a Índia tem destas coisas! Depois fui para casa com o chinelo do André e ele foi descalço (velhos hábitos!).

Meios de locomoção e lentilhas à parte… O objectivo era conhecer a Índia sem maquilhagem, sem elefantes com desenhos cor de laranja e almofadinhas com lantejoulas, sem ar condicionado. E assim foi. Este tempo foi cheio de lutas, porque a Índia é quente e suja! Mas mais ela é muito mais! É cheia de histórias de injustiça e crueldade, algumas vocês ouviram outras ficarão para mais tarde, outras, ainda, continuarão dentro das casas e com a boca semicerrada em tom de resignação. Mas há mais! Há a resistência de um povo que tem pobres a mais, comida a menos, deuses a mais, esperança a menos, necessidades a mais, oportunidades a menos. No entanto, eles resistem… resignados mas persistentes. Como uma criança que leva porrada mas não chora, e não chora porque não pode, porque não deixam, mas se chorasse ninguém ouvia!

Nós ouvimos! Ouvimos o choro das meninas que vieram dos bordéis, das crianças que vieram da rua, dos sem abrigo, dos dependentes, das pessoas sem assistência médica acessível… ouvimos com ouvidos de ouvir. A maior parte do tempo, o nosso tamanho só nos permitiu ouvir e ajudar em pouco, resolver em menos, atenuar em alguma coisa. Mas guardámos! Guardamos as lágrimas deles e as nossas no coração e continuamos a aventura. A viagem agora prossegue, porque queremos ouvir mais, queremos conhecer mais, mais necessidades, mas também mais opções de ajuda, mais esperança! Então rumamos para sul…

Leitor imaginário, daqui até à próxima paragem são 28h de comboio, e já só tenho um par de chinelos!

Quanto aos outros leitores um abraço para vocês e obrigada pela companhia, gosto muito de vos ter por perto!

Comentários

  1. quando se decidi viajar com Deus é o que dá!
    os teus netos vão gostar de ouvir as tuas histórias!!
    beijinhos aos dois! e até breve!

    ResponderEliminar
  2. Obrigado por partilhares as vossas historias, a mim inspira-me estando aqui deste lado... Continuem a ser usados por Deus. bj grande
    P.S. quando voltares ofereço te uns chinelos ;);)

    ResponderEliminar
  3. aquilo que partilhas é de facto grandioso demais para se ler apenas e não se meditar no que de facto é importante ser e fazer para atenuar a miséria que tão de perto nos rodeia. Admiro imenso a vossa paixão inquieta que vos incomodou a ir e estar dentro do caos, sofrendo o dano, ainda que chorando por dentro, amando aceitando e ouvindo por fora. amo-vos muito. beijos

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Mensagens populares deste blogue

Deu tudo certo!

A mala está semi-feita, faltam as coisas pequenas, falta fechar, despachar e partir. É bom partir para casa, mas é difícil fechar este ciclo. Atrás de mim ficam as histórias, as pessoas com quem aprendi a ser bem mais que médica, ficam as coisas que só poderia ter vivido num país virado para o sol e para os sorrisos abertos. Elas ficam e vêm comigo no coração, porque a mala já tem excesso de peso, trago o que sou agora e que não era há três meses atrás.  Aliás, essa é a beleza desta experiência, vou provavelmente esquecer-me dos critérios do síndrome hemofagocítico, mas dificilmente da médica que deu chocolate e coca-cola à menina que tinha uma sonda naso-gástrica, dos meninos da enfermaria, dos adolescentes da consulta, isto tudo vai comigo e irá para onde eu for! Escrevo isto com o peito apertado, aquele desconforto na garganta, um incómodo que não sei explicar, no fundo estou ansiosa de chegar e a rebentar de saudades e ao mesmo tempo triste por deixar isto tudo para trás.

Em desembaraço

Passaram 10 meses desde a nossa partida… mais qualquer coisa e damos à luz o nosso burro! E que grande burro é este, com sorte vem às riscas e é uma zebra! Zurrices à parte e sem brincadeiras, realmente o que aqui temos vivido assemelha-se em muito a uma gestação, mas daquelas de risco e com direito a muitos sustos. O início, tal como o primeiro trimestre da gravidez, foi repleto de náuseas e enjoos, as coisas perderam o sabor do costume, a vida sentia-se letárgica e molengona, num arrasto ao ritmo do calor que se fazia sentir neste verão africano. A bem dizer, era deste ambiente não tão agradável que eu precisava para aprender a prestar atenção aos detalhes e ao silêncio. O ruído da vida em Portugal era tal que levei meses a ouvir aquele zumbido característico de quando se sai de um concerto com música muito alta, um tinido interior, constante e rítmico que me lembrava que a vida tinha mudado. Foi então uma espécie de desintoxicação, daquelas beras com ressaca a frio sem direit

A festa, a arca e as moscas!

A jornada continua e a história também. No entanto, hoje a história é outra, o mundo é outro e eu sou outra noutro mundo! A necessidade de deixar um registo escrito deste período da vida é mais profunda do que visceral, vem da carcaça… dos ossos… da estrutura do esqueleto! Não conseguindo prever o que aí vem, tenho a certeza que será uma viragem no rumo de todos nós e de tudo em nós. Por isso, obriguei-me a sair do buraco da inércia e aqui estou à mercê de quem por aqui passa, e a jeito para futuras leituras retrospetivas que espero que tenham mais lucidez do que o momento presente. A vida aqui pelo Reino de Eswatini corre com uma normalidade tosca de quem vai à festa de vestido roto com sapatos de verniz. Temos poucos casos e à data apenas um morto, na última semana os casos aumentaram 1 -2 por dia, nada comparável às outras tragédias. Porém, o número de testes feitos deixa muitas dúvidas, só esta semana é que começaram a fazer testes no laboratório nacional, anteriormen