Hoje escrevo de uma assentada só,
o tempo escasseia e as vivências transbordam. Faltam só uns dias para partir e
nestas páginas já faltaram 3 meses. É com um sorriso que olho para trás e sussurro
entre dentes: “deu certo” como diriam estes meus novos amigos.
É neste ambiente de “fazer a mala”
que vos trago as histórias de hoje que na verdade são da semana passada, que
vão sendo dos anos que passam pela vida destas crianças, as histórias têm nome,
bochechas e birras, são pequenas, umas com final feliz, todas em construção,
assim como os seus protagonistas.
A consulta de pediatria começa
devagar, um resumo do doente antes de entrar na sala, vêm à baila as histórias
da infeção, este apanhou o HIV na barriga da mãe que nunca tomou a medicação,
aquela menina foi abusada, aquela criança desconfiamos que também… e continuam
as histórias que tornam as sístoles rápidas e secas, batimentos duros que lutam
com a injustiça, os olhos pestanejam, as mãos arrefecem e a criança entra no
gabinete.
Não vem sozinho e também já não é
uma criança, é um homem feito, traz ao colo a filha e atrás vem a esposa. O
menino começou a ser seguido nesta consulta há mais de 20 anos, com a mesma
médica e com a conversa do costume: “se tomares os remédios direitinho vai tudo
correr bem”. E não é que correu?! Hoje já é grande, é fisioterapeuta, é pai de
uma criança saudável, “deu certo”! E o HIV? Está bem, obrigado! Mas a conversa
vai para lá da infeção, falamos das dúvidas de um casal de pais jovens, os
medos, as inseguranças, ele fala, nós escutamos. E de repente, ela com a
criança nos braços interrompe para dizer que não se importa com a doença dele, que
sabe bem os cuidados que deve ter e que isso basta, faz uma pausa, respira
fundo e diz que ele foi a melhor coisa que lhe aconteceu e que um vírus não vai
mudar isso! E esta mini médica (piegas!) suspira, sorri e o pensamento foge
para os meninos internados no andar de cima. Isto sim é seguimento ambulatorial
bem feito! A conversa teve pouco de ciência e muito de vida, houve conselhos
para os jovens pais, houve espaço para desabafar o que não se fala com ninguém,
ali no consultório renovaram-se mais do que receitas. A porta fechou, ficaram
os médicos, uma sensação de dever cumprido pairava no ar.
No fim, veio a história
deste menino que já é homem, há muitos anos atrás, quando o diagnóstico foi
feito, o pai dele transtornado pela notícia, deu um tiro na mãe que morreu à
frente do filho. (silêncio) Olho agora para a porta de onde ele acabou de sair
e agradeço pela possibilidade de fazer parte, uma minúscula parte, desta
história de esperança. Humilde, desejo que estas experiências, estas histórias
ouvidas e vividas construam o que aí vem, sejam parte integrante deste projeto
de mini-médica.
A consulta continuou, as histórias
também e o sorriso inspirado na esperança manteve-se.
Leitor imaginário, no meio da
injustiça da vida e desta enfermaria cheia de desgraças, soube-me tão bem ver a
cara de orgulho que o “menino” fez quando mostrou a filha à sua médica. Que privilégio
este de poder ver muito mais do que o HIV na criança, aqui tenho visto a
criança… o HIV estudo em casa.
Restantes leitores, as saudades
de casa deixaram subir a pieguice à superfície do texto, talvez o futuro traga
mais sobriedade, por agora ficamos com os trópicos e com a esperança nos olhos
molhados! Que linda combinação! Um abraço para vocês e obrigada pela companhia.
Comentários
Enviar um comentário