Ando às voltas com este texto,
enrolado nas pontas do pensamento, sem fim, sem meio, mas com vontade de ser
dito. Um dia sonhei ser voz de quem não a tem, uns pela falta de boca e outros
pela falta de ouvidos e atenção, um sonho daqueles que não se contam a ninguém,
uma inconfidência, uma janela demasiado alta para quem só tem dois pés e duas
mãos. Um dia, dois dias, três dias, agora já não tenho 14 anos, mas ficaram os
sonhos, vieram as viagens pela medicina e pelos trópicos e vim parar ao Brasil.
Cá ando eu de coração cheio, olhos arregalados, vontade de saber mais e ser
mais, e o sonho volta! Incomodada escondo-me, ocupo-me, distraio-me,
procrastino, finjo, lembro-me que o problema não é meu, a história não é minha,
a voz não me diz respeito. E o sonho volta, pedrinha no sapato, esta vontade de
justiça, esta ânsia de reconstrução, este querer contribuir. Com o quê? Com a
voz, com a história, com a lição e com o pedido de ajuda, com o pão e os
peixinhos. E porque continuo incomodada trago-vos as histórias das últimas
semanas aqui na pediatria, as histórias de quem não tem voz. As histórias que
me fizeram engolir em seco e trazer-vos a seco este texto.
O menino C. tem 2 anos, nasceu
antes do tempo e já estava doente há muito tempo, ele e a mãe. Durante a
gestação a mãe, menina jovem, apanhou uma infeção e o desenvolvimento do C.
levou um grande safanão. Então, este menino apesar de lindo, tem uma grande
parte do cérebro que não se desenvolveu, na imagem do crânio dele há uma
espécie de espaço vazio… e agora? Dois anos depois ele volta porque está piorzinho,
já não diz “pá”, está muito irrequieto e grita muito, depois de excluídas as
coisas más, dizemos à mãe que é mesmo assim, esta é a evolução natural da
doença. A mãe pergunta se ele consegue ver e nós dizemos que não, porque ele
não tem essa parte do cérebro, ela discorda, com respeito, mas discorda, porque
o filho dela tem dois olhos, então ele tem de conseguir ver. Ela pergunta
porque é que o filho não brinca, porque é que é agressivo com as outras
crianças, ela sonha com um filho que vá para a escola aprender a ler, mas o C.
dela não vai conseguir andar nem falar… e no fundo, ela sabe, mas não quer
dizer, falta-lhe a coragem, falta-lhe a voz! Resta-nos ouvir!
E do outro lado do corredor temos
o bebé L., veio porque tem febre, parecia dos dentes, depois da creche, depois
da irmã que estava doente, mas depois a febre não passou e ele veio ter
connosco. Não tinha nada que chamasse a atenção, estava bem-disposto, até
deixava a bata branca aproximar-se, mas tinha febre! A marcha da febre começou!
Análises e imagens, tudo normal, sem dor, sem manchinhas, sem ponta por onde se
pegue. E um dia decidimos fazer uma punção lombar (aquele exame que tira
liquido das costas para ver se não há infeções na cabeça), e por precaução
chatinha, daquelas coisas que nem era preciso, mas se calhar é melhor, lá
fizemos uma ecografia à cabeça do menino antes de tirar o líquido para evitar
as complicações. Conseguimos a ecografia no mesmo dia e até já tínhamos o
material para fazer o exame em cima da mesa, saio da sala e vejo a mãe e o L. a
voltarem da ecografia com a médica que traz na mão o relatório. Faço uma
festinha no bebé e olho para a mãe que chora, imagino que esteja nervosa por
causa da punção, digo meia dúzia de palavras de conforto e penso que temos de
nos despachar. Logo ali, pergunto à jovem médica o que diz o relatório do exame
e antecipo mentalmente a próxima pergunta: “ Já fizeste alguma punção lombar?
Queres ajuda?”, e ela faz-me sinal e dá-me o relatório para a mão. Despeço-me
da mãe e entro na sala, leio linha por linha que o L. tem um tumor no cérebro,
grande, demasiado grande. O diagnóstico está feito. A mãe chora. Choramos todos
(uns para dentro e outros para fora). E agora? Conseguimos uma transferência
nesse mesmo dia, no dia seguinte o menino foi operado, agora aguarda, a
histologia dirá. E agora? (silêncio)
No caminho para casa lembro-me da mãe e do
L., pesa-me o coração, ele tem 10 meses e ela teve 10 meses com ele… Um aperto no
peito, pesa-me a insuficiência, dói-me a doença e lembro-me que isto faz parte!
Fazer parte do pior dia da vida das pessoas faz parte… e isso também é ser a
voz de quem hoje não consegue falar.
Leitor imaginário, isto às vezes
é para lá de difícil, mas a vontade de lutar contra a miopia mantem-se.
Restantes amigos, leitores,
companheiros de peregrinação, falta uma semana e meia… e uma vida inteira de aprendizagens
e no meu cesto só há um pequeno lanche… há que caminhar com a certeza da
multiplicação. Vamos?
Um abraço
(Engoli a seco, levei as mãos os peito, fiquei estagnada em algumas palavras. Recuperei)
ResponderEliminarBora, Bianca!