Esta semana andei pela infeciologia pediátrica. Já não via
crianças na consulta ou na enfermaria há muito tempo, resultado: andei a maior
parte do tempo de coração encolhido, espremido na tentativa de manter os olhos
abertos e acabar com a visão em túnel.
As crianças aqui são mais pequenas, enfezadas, a tisica, o
arroz sem mais nada, a lombriga e o resto dos parasitas intestinais, o muito
que correm, tudo isto dá em crianças magras, baixinhas, olhos encovados,
imunidade frágil, portadoras de doenças que nunca me tinham passado pelos
olhos, quanto mais pelas mãos.
A semana foi assim, cheia de coisas novas, umas mais duras
do que outras, apimentada de sorrisos curiosos e bebés magrinhos! Lembro-me de
duas meninas na consulta, irmãs, muito parecidas, olhei para elas e pensei
devem ter 6-5 anos, elétricas, não pararam quietas, tantas perguntas num inglês
simples que fui entendendo com ajuda, interessadíssimas em conhecer-me, em
tocar-me e sem vergonha até um beijo na face me roubaram. Queridas meninas que
afinal tinham 11 e 10 anos, ambas com tuberculose óssea em tratamento. De
repente, involuntariamente, lembro-me dos nossos meninos com 11 anos, a quem
chamamos pré-adolescentes, com os seus telemóveis, os seus penteados, os
sapatos a condizer com o chapéu, e sim, o coração encolhe com as diferenças dum
mundo injusto.
Continuamos, e vêm os meninos que têm VIH, com os seus xaropes
e comprimidos, tantos medicamentos para tão pouca idade, tantas consequências, um
futuro condicionado (…) O médico conhece-os bem, eles sorriem, e eu cá dentro
agradeço pelo avanço científico no VIH, falta muito, mas já temos muito,
obrigada pelos medicamentos e pelo conhecimento, obrigada porque não mandamos
estes meninos e os seus pais para casa sem solução!
O dia da visita à enfermaria é sempre mais difícil, aqui
eles estão mesmo doentes, muito dengue, muita meningite, a tuberculose sempre
presente, a pergunta constantemente dirigida a mim: “ Já tinhas visto isto?” E
a resposta constantemente repetida: “ Não, nós não temos, é a primeira vez que
vejo! Não temos doenças tropicais, ou temos vacina, ou temos um bom sistema de
cuidados de saúde primários (Ai é bom, é tão bom, vocês nem imaginam) ”.
Seguimos para a unidade de cuidados intensivos, bebés
entubados, crianças muito doentes, não gosto nada disto, de cama em cama, a
patologia vai piorando! Chegamos à última, uma menina de 9 anos com difteria,
vejo pela primeira vez uma doença que até agora era só a letra D ao lado do T na
vacina TD (tétano e difteria), quadro gravíssimo, tinha entrado ontem, 3 dias
de doença, a suspeita fez com que se iniciasse o tratamento, análises em curso,
umas horas depois vim a saber que a criança faleceu (silêncio). A vacina teria
evitado isto, 9 anos, aquilo a que chamamos morte desnecessária… Silêncio! E é
em silêncio que o coração se vai contraindo enquanto escrevo isto, a vontade de
fazer alguma coisa neste mundo desigual explode com a taquicardia, e de sístole
em sístole encho o coração com fome e sede de justiça!
A miopia melhora, o
coração está cheio e uma memória da semana passada reaparece, vi um jovem com
lepra, um leproso, já no fim do tratamento, quase sem sintomas, para a
infeciologista que vive dentro de mim foi ótimo, um caso de lepra, o primeiro
que vi na vida! Mas para a pessoa que vive dentro de mim, foi mais do que a
raridade da patologia, enquanto examinava os nervos da perna, lembrei-me do Mestre,
imaginei-o a tocar o leproso que ninguém queria tocar, um leproso bem mais doente
do que o que estava à minha frente, imaginei-o a tocar com a intensão de curar
muito mais do que a lepra, e o coração enche-se com vontade de se esvaziar!
Leitor imaginário, a viagem continua e a aprendizagem
também, estou contente e grata por esta oportunidade.
Restantes amigos um abraço aqui da Índia que continua quente
e suja mas cheia de coisas para aprender. Obrigada pelas mensagens, pelos
comentários, pela companhia…
Ai ai que está doeu fundo!! Admiro-te cada vez mais amiga! Um beijinho e abraço apertado de alguém que ficou com o coração bem apertadinho!! <3
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