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a vida continua cheia de histórias...

Hoje trago-vos a história de uma menina bonita, 25 anos, alta, magrinha e com um olhar assustado… demasiado assustado.

A primeira vez que a vi disse-lhe “hello!” e ela nem olhou para mim, e claro, a minha reacção foi pedir à rapariga que estava ao meu lado para traduzir a saudação. Bom, a resposta obtida foi semelhante, mas desta vez veio com “legendas”: - “Ela é nova cá, não fala muito!”. Realmente, ela não falou, nem muito nem pouco, mas não foi difícil descobrir porquê. Voltou agora do hospital, esteve alguns meses lá. Está connosco aqui no centro há 1 dia! Porquê? (tenho de começar a ter cuidado com as perguntas). Fugiu do marido. Ele queimou-a na barriga com querosene. (silêncio… porque não soube o que pensar, quanto mais o que dizer). Nem sequer consigo imaginar a violência de ser torturada pelo próprio marido… e pergunto-me sobre o que terá acontecido a esta menina, onde é que a violência começou… até onde é que a ferida vai? Que marcas é que vai deixar?

De repente, cresce-me a vontade de agarrar nela, pô-la num bloco operatório e desinfectar, desbridar, escarafunchar, retirar a dor e o sofrimento, limpar as memórias, embrulhar o medo numa compressa e deitá-lo para o balde. E, no fim, fechar! Fechar as várias camadas com uma sutura bonita mas firme, agrafos na pele e um penso compressivo por cima. Agora, vai para casa com antibiótico e nolotil para as dores, ao fim de 8 dias volta cá, quero vê-la na consulta! Ai como eu gostava de tratar estas meninas assim, cirurgicamente, de maneira a resolver-lhes o problema, a limpar as feridas… mas não pode ser, há coisas que o bisturi eléctrico não resolve, muito menos eu, a jovem “mini – médica” que nem a língua dela fala e que nunca foi queimada por ninguém.

Orei por ela, honestamente, foi tudo o que fiz. Pedi a Deus que fizesse aquilo que não sei fazer, que a confortasse, que lhe trouxesse paz, aquela paz que excede todo o entendimento… a paz que sinto, quando a Índia é demasiado grande e eu demasiado mini!

E no dia seguinte, voltei a dizer “Hello!” e ela voltou a não responder, mas desta vez olhou para mim. Passou mais um dia, o “Hello” teimou em aparecer e fui surpreendida por um olhar com um sorriso ainda em esboço, mas um sorriso! No fim da semana, o “Hello” passou a ser respondido com outro “Hello” e o olhar assustado começou a ir embora e foi substituído por um sorriso bonito, ela ainda tem uma expressão séria na cara… mas atenuada, bastante mais leve do que no início! Há esperança!

Ontem amanheceu com febre, observei-a, auscultei uns pulmões muito doentes, uma tuberculose já em tratamento, que esperamos que responda aos antibióticos. Depois, no exame objectivo, seguiu-se o abdómen, e aqui houve relutância em levantar a camisola e mostrar uma barriga cheia de marcas, curada, mas com um rasto de violência difícil de esquecer. Palpei ao de leve, sem invadir, e mais uma vez chorei, por dentro, por ela… por elas! Pelas meninas que sem culpa são maltratadas, espancadas, queimadas, vendidas, abusadas, … e muitas delas nunca são ajudadas, muitas morrem sem voz, sem socorro!

E o que mais me deixa triste, mas uma tristeza a roçar a revolta, é a resignação. Estas meninas vivem conformadas com o que lhes calhou em sorte! Este povo vive resignado, eles não falam de injustiça, porque na verdade vêem-se a viver num mundo dividido em prateleiras, ou castas se preferirem, onde uns nasceram para procurar garrafas de plástico na lixeira e outros para serem doutores, uma ordem pré estabelecida e onde não há lugar para a injustiça! Neste caso, a religião é mesmo a força que mantém a ordem, as regras estão ditadas há séculos, não há direitos humanos, porque isto é “cada macaco no seu galho” e uns têm direito a uma vida confortável porque nasceram na família certa e outros terão direito a limpar os carris dos comboios e a viver nas estações, porque assim disseram os mais de 1000 deuses que por aqui levitam.

Talvez por isto, a pobreza na Índia seja tão violenta, porque está repleta de conformismo, não é só falta de dinheiro, de recursos, de limpeza, de estrutura, de ordem… é falta de esperança, é falta de acreditar que a vida pode ser diferente, é falta de… (respondam vocês).

Em parte, foi isto que encheu os corações dos homens e mulheres que, ao longo dos séculos, deixaram tudo para trás e viajaram para esta terra quente e suja. Vieram e na mala trouxeram mais do que medicamentos e material escolar, com eles veio a esperança do cristianismo, a que diz que todas as pessoas são iguais e merecem ser cuidadas e amadas e isto foi o que serviu de base para a ajuda aos pobres, aos órfãos, às viúvas, aos leprosos, aos que nem por justiça podiam gritar!

Muitos missionários depois e muito tempo depois, cometeram-se erros, construíram-se sonhos, mas a necessidade ainda existe e cresce com a população! Ainda há muitos que sofrem em silêncio e em resignação… e é por eles que estamos cá!

Leitor imaginário um abraço dos grandes!

Outros leitores que por coincidência ou intenção por aqui andam, um abraço também para vocês, cheio de vontade de vos fazer parte desta viagem e das reflexões que vêm atreladas a ela.

Comentários

  1. Considera-te uma privilegiada! Em 1º porque tens o Amor que te faz mover fronteiras e ir apoiar e ensinar a amar aqueles que mais necessitam! Em segundo por seres uma aventureira, não daquelas que apenas sonha fazer algo, mas daquelas que concretiza com vivências únicas. E, por fim, porque essas experiências preenchem-te, fazem-te ser um ser humano mais completo, uma médica mais humana... espero um dia poder ter um privilégio semelhante ao teu! Beijinhos grandes para ti e para o teu companheiro de viagem ;) Sara Vidal

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  2. Quando o bisturi eléctrico não resolve, quando as nossas mãos não resolvem , só Deus resolve. Confia n´Ele . Beijos e vou orar por ti . Helena :D

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  3. Bem que história, emocionei-me ao lê-la.. finalmente consigo deixar aqui o meu comentário... tenho andado aqui num reboliço que quase nem tenho tempo para parar e respirar. Anyway.... não consigo imaginar o sofrimento que vês todos os dias, deve ser inexplicável... Mas obrigado por partilhares estas histórias. A mim ajuda-me a ver como sou abençoada. Estou a orar por vocês e por estas meninas/mulheres que vais encontrando. bj

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  4. ;) Bom trabalho, Bianca! Um beijinho

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  5. Vir aqui e ver os vossos comentarios traz-me mais alegria do que aquela que consigo expressar... e mais ou menos como chegar a casa e ter uma mesa cheia de amigos! Gosto muito de voces!

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  6. Nao sei exactamente como encontrei este blog. . . o certo e que estou acompanhando essa sua aventura e oro frequentemente por si.
    May you be an instrument of grace in the midst of such hopelessness. That is really our call, isn't it? As our heart is transformed by His grace we become His hands, His feet, His voice to a dying world. May He draw "meninas" unto Himself as you love them . . . after all, that is all we can do but it is also the best we can do.
    May you be blessed with a growing sense of destiny as He lives through you, my friend.
    Dulce Estudante Rock

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  7. é pedir a Deus que ajude a sarar as feridas e as restaute interiormente.

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