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Já passou um mês…

A vida por aqui continua! Há dias lentos e lânguidos, preenchidos de lutas com a língua; com a cultura; com o picante que teima a aparecer no meu prato; com o suor que me escorre pela cara continuamente; com o lixo que está por todo o lado e cobre as ruas sem critério; com a tentativa, por vezes tão frustrada, de compreender as pessoas e de ser compreendida por elas… batalhas que produzem picos emocionais demasiado violentos para o meu paladar ocidental!

No entanto, há dias em que o sol brilha e brilha com vontade! Vontade de ser relevante, de fazer alguma coisa útil neste mundo tão caído e tão injusto! E são esses dias que trazem o alento que é preciso para resistir, e sim é mesmo disso que se trata, uma prova de resistência e das grandes… Tão grande que se não fossem os momentos em que o “sol” (se é que me faço entender) ilumina por fora e por dentro e traz a clareza e o quentinho necessários para continuar a correr, se não fossem essas alturas… não sei…

É um desses dias que vos trago hoje… um dia soalheiro e cheio de esperança!

Uma vez por semana vem um médico cá ao centro ver os doentes, uma espécie de médico de família, um senhor simpático, bonacheirão, com a paciência e a calma que os anos de prática clínica teimam em trazer. Vi os doentes com ele, entre um e outro explicou-me as manhas da casa, entre dentes fui ouvindo as histórias das tias: “- Esta tem HIV, está bem, está estável, tem os CD4 (as defesas) dentro do intervalo aceitável. – “E a carga viral?” (perguntei, eu, com a inocência que aprendi na faculdade) – “Não fazemos a carga viral, porque é muito caro…” (silêncio). Continuamos, desta vez com menos perguntas: “ - Aquela tem tuberculose multi-resistente (aquela que acabei de auscultar sem máscara e sem nenhum tipo de isolamento, valha-nos a BCG e as orações dos justos), esta não tem nada e só quer atenção”…

”- E aquela? É nova cá, não é?”

“-Sim, está cá há 2 dias, mas já a conheço há muitos anos, é acompanhada na nossa clínica na rua da prostituição de Bombaim, está aqui por que fugiu do dono … HIV e pneumonia. Um olhar assustado, mas com um nome bonito e com um significado diria até profético, diria mas não digo, porque não quero chocar ninguém! Chama-se Sonho! Sim, a menina que foi vendida pela família para a prostituição e que fugiu do dono aos 26 anos, chama-se Sonho! Aqui o sol brilha, porque ela já pode sonhar, porque já não pertence a nenhum dono, desculpem-me o pleonasmo, mas às vezes deixo-me levar… Fiquei contente, por poder ver isto…por poder auscultar não a pneumonia (porque disso também temos aí em casa), mas a liberdade, a liberdade de sonhar… e sorri-lhe! E a alegria aumentou quando no dia seguinte ela apareceu na minha aula de inglês e aprendemos a perguntar “How are you?” (Como estás) e é bom saber que ela agora pode responder com sinceridade: “I´m fine, thank you!” (Estou bem, obrigada).

Enquanto escrevo isto há outra história que me quer saltar pelos dedos, mas ficará para mais tarde…

Leitor imaginário, obrigada pela atenção, um abraço para ti!

Quantos aos outros que por aqui passam, espero que em parte a história da “Sonho” também vos ilumine o dia e vos ponha a sonhar…mas alto e longe, porque de mediocridade já temos a casa cheia.

Um abraço!

Comentários

  1. Bianca

    Parece que estou a ler um livro de histórias missionárias, mas aqueles dos bons (dos muito bons)daqueles que ninguém consegue parar de ler.

    A questão é que são histórias bem reais, histórias de vida que nós nem imaginamos ou pensamos que existem.

    Tem sido leituras muito muito boas, palavras que marcam a minha postura de ver a realidade mundial e me inspiram para um trabalho semelhante.

    Vocês são uma grande bênção.

    Um grande abraço Ribatejano

    Marcos Oliveira

    ResponderEliminar
  2. Olá Bianca,

    Eu passei dois meses pela India a fazer voluntariado como professora entre Junho e Agosto deste mesmo ano.
    Sei o quão dificil é a 1ª semana e o quão divertido é o último mês e as saudades que temos quando regressamos a Portugal...

    Soube quando estive no CRC que tencionam ir a Chennai. Eu viajei bastante, durante o 1º mês fiz ai umas 10 viagens entre Bellary e Bangalore, depois viajei de Bellary a Hyderabad 2 vezes, Hyderabad para Mumbai e Mumbai para Goa. Fiz tudo sempre de autocarro, sendo que eu tenho preferencia pelos em que se vai deitado. A verdade é que com a pessoa certa essas viagens (longas... e bem longas) são divertidas.
    Ou seja não vos digo para não irem de avião, mas a verdade é que indo de espirito aberto é muito divertido viajar na India rural e nos autocarros as vezes mais nojentos e pobretanas mas em que temos a oportunidade de ver uma série de aldeias e paisagens e parar em alguns "restaurantes" peculiares :)

    Espero que a vossa viagem corra bem, que consigam contribuir sendo que sei que é dificil as vezes regressar a Portugal depois de criar um laço com certas pessoas e saber que as probabilidades de sucesso para elas de quase 0% ...

    Se quiserem ver fotos da minha viagem ou mais alguma coisas o meu nome de facebook é Sofia Natty

    beijinhos
    Sofia (com MUITAS saudades da India...)

    ResponderEliminar
  3. Miúda,
    É muito bom acompanhar-te por aqui.
    Tenho pensado em ti e no André - já tenho saudades!!

    Grande abraço (daqueles).

    P.S. Temos tuberculosa cá em casa?!...

    Tiago

    ResponderEliminar
  4. Gosto mesmo de vos ter por ca!!

    Tiago, em casa temos umas quantas doencas, mas acho que tuberculose nao...
    Eu espero e que quando eu chegar haja bifes e dos grandes!!

    um abraco gigante

    ResponderEliminar

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