O dia começou com uma viagem de canoa para S.joão, onde vamos uma vez por mês dar assistência médica e trabalhar com a comunidade temas importantes, como planeamento familiar, nutrição, tratamento da água, entre outros.
Demos consulta em duas tabancas, e vimos de tudo um pouco, desde gente muito doente com pneumonia, gastroenterite grave, malária, a gente saudável que nem uma alface (o ícone das coisas saudáveis), mas com muito medo de estar doente e muita vontade de ser vista pelos “brancos” e estes são os mais difíceis de tratar… como aquela senhora que quando lhe perguntei a idade me respondeu que tinha 140 anos (bom…) e que se queixava de dores no corpo e cansaço: “pudera com essa idade!”, lá levou uma pomada para acalmar a passagem do tempo, um verdadeiro creme “anti age”!
O dia chegou ao fim, tranquilo, com tempo para ver o pôr-do-sol e ler “Os cus de judas” do Lobo Antunes e foi no meio da descrição fantástica que ele faz da guerra de Angola que me chamaram, porque havia mais consultas para fazer. Uma carrinha de caixa aberta tinha acabado de chegar vinda de uma tabanca distante e onde não há assistência médica, trazia 4 doentes, e só chegou ao fim do dia porque a “estrada” (que não tem alcatrão) estava em péssimo estado e tiveram de parar umas quantas vezes.
Começámos por uma criança, olho esquerdo inchado (inchado é pouco!) há mais de um mês, a miúda nem conseguia abrir o olho, esperemos que este seja um daqueles casos em que os antibióticos fazem milagres… ” Como é que é possível deixar isto andar um mês? É um olho! É uma criança! “- grita a nossa alma ocidental nascida e criada em centros de saúde, mas o eco que recebemos é o de uma mãe que vive num sítio onde NÃO HÁ assistência médica (silêncio… não há nada como o silêncio).
Agora é a vez da mãe, que também se queixava de um olho, e eis que foi à luz de uma lanterna, porque entretanto tinha anoitecido e não há electricidade no posto de saúde, que vi a minha primeira úlcera da córnea … (silêncio, outra vez!) uma pomada e olha… quer dizer “olhar” não é bem a palavra, poderá ser um termo de difícil utilização no futuro.
Passámos para uma senhora, agora era noite cerrada lá fora e eu estava a ficar cansada, confesso que quando ela se queixou de dores de garganta pensei: “ya, uma amigdalite viral, passa sozinho daqui a 3 dias… Até que ela abre a boca e na garganta, lá bem ao fundo, estava uma massa do tamanho de uma bola de ping-pong que de tão grande que era empurrava a úvula para um dos cantos da boca. Consistência dura, imóvel, recoberta de mucosa oral, sem febre, sem dor, sem outros sintomas a não ser um emagrecimento e um cansaço difíceis de quantificar. A pergunta a fazer é :”Mas que raio é isto?”, não temos resposta, ali de lanterna na mão a olhar “feitos parvos” para a garganta da senhora e a recapitular mentalmente os apontamentos das aulas de otorrino com vontade de ligar ao professor que no fim das consultas perguntava sempre aos doentes com um grande sorriso se tinham dúvidas. Não temos uma resposta definitiva, mas as que nos vêm à cabeça são más, são muito más… e se calhar teriam solução no IPO ou num qualquer serviço de otorrino num hospital central, mas… silêncio mais uma vez! Aconselhámo-la a ir ao hospital de Bissau, lá eles têm análises e Raio X… mas não há TAC, não há TAC em toda a Guiné… o silêncio voltou!
Para terminar vimos um rapaz, 19 anos, há um mês atrás tinha-se aleijado com um pau no olho e agora não conseguia ver bem, então de lanterna em punho, encontrámos uma córnea ”esfarelada”, reflexo pupilar inexistente, acuidade visual extremamente reduzida, 19 anos… menos um olho… mais silêncio! E foi com calma e com o máximo de tacto possível que lhe dissemos que não havia nada a fazer e que ele, muito provavelmente, não melhoraria a visão, ao que ele reage com um encolher de ombros e um olhar para o chão… A dureza e resignação também se aprendem, e por aqui essa escola começa cedo…
Dormi mal nessa noite, havia demasiados silêncios na minha cabeça e o barulho deles não me deixou dormir…
Leitor imaginário, continuarei por cá de lanterna na mão… um abraço!
tenho medo Bianca. tenho medo desta nossa vida, em que sonhamos ser o melhor, saber e compreender o melhor, diagnosticar o melhor, trabalhar com os melhores. mas o melhor não chega para meio-mundo. o melhor não existe para metade das almas que almejam como eu pela glória em vida. metade de nós vive nisso. e eu tenho medo. de andar a trabalhar pelo melhor errado. mas o melhor que posso fazer por estes "meus" é o que tenho feito. faço como tantos e fecho os olhos a isso? cego minhas córneas a isso? cegar-me a isso é fechar meu coração. e disso tenho medo, Bianca.
ResponderEliminarMeu Deus, Bianca, que realidades tão distantes da nossa. Faz-nos pensar e muito. Mas pensar não chega. Que Deus te continue a ajudar nesta missão. Bjs
ResponderEliminarLeaving_to_live ter medo faz com que fiquemos mais atentos e isso é bom...então não feches os olhos.Abre-os! E sempre que necessário usa uma lanterna que ilumine o teu caminho e o dos que te rodeiam. David,o salmista, escreveu "luz para os meus pés é a tua Palavra"...tenho recorrido muitas vezes a essa "luz de presença" e isso tem-me ajudado a lutar contra a minha teimosa miopia de coração!
ResponderEliminarum abraço
Lara, obrigada pelo apoio e pelas orações. Vamos pensar e vamos arregaçar as mangas e fazer "aquilo que nos vier à mão para fazer!".
um abraço