Continuo a contar-vos a história do meu 37º dia por terras Guineenses, por aqui há dias compridos que merecem 2 entradas no “tasquim”.
O “toca-toca” chegou a Bissau às 15h, eu já estava com uma certa fome (adoro a especificidade da língua portuguesa, não há nada pior que ter uma fome incerta) e ia almoçar sozinha, porque o outro membro da equipa estava com febre e ia descansar para o hotel (passado umas horas descobriu-se que a febre era malária…ai… que eles “andem” aí! Bom, espero que a mefloquina não se esqueça de fazer efeito, é que para a quantidade de vezes que sou picada…). Recomendaram-me um restaurante que era barato e tinha umas espetadas muito boas, lá fui eu, à procura da “mana Bucha”, encontrei uma espécie de garagem escura e vazia, mas com a porta aberta e uma senhora a lavar roupa num grande alguidar! Era o sítio certo. Não estava fechado, mas hoje só fazia comida para levar, ora se eu levasse era para comer ali à porta, sentadinha nas escadas até porque estava a chover horrores lá fora. Depois de explicar a minha situação à senhora e quase a desistir de comer as famosas espetadas, numa última tentativa de persuasão hoteleira lá mandei para o ar (no meu melhor crioulo) “Pudi kumi li?” (posso comer aqui?) e a senhora limita-se a responder: “Pudi!” e tira uma mesa e uma toalha e está montado o restaurante (flexibilidade no seu melhor!).
Foi uma óptima refeição, daquelas em que a falta de limpeza do sítio é compensada pelo sabor da carne de origem duvidosa, e a companhia acabou por ser muito agradável, almocei com o Ryszard Kapuscinski, jornalista polaco que foi correspondente em África, América do sul e também na Europa de leste. Bom, mais precisamente, almocei com as histórias que ele conta no “The Soccer War” um livro sobre os vários conflitos que aconteceram em África na década de 60 e que ele testemunhou. Leiam, fica-se a perceber muita coisa sobre a realidade actual deste continente, há acontecimentos que é bom ter bem vivos na memória, não vá o Alzheimer atacar.
À tarde fui ao Bandim, o mercado principal de Bissau, é indescritível! Bancas e banquinhas por todo o lado, vende-se comida, sapatos, ganchos, regadores, escovas, panos coloridos, tudo e mais alguma coisa, toda a gente grita, empurra, vende, regateia, faz troco e estava especialmente animado porque a selecção de futebol da Guiné estava, naquele momento, a jogar em casa contra o Quénia, era toda a minha gente a ouvir o relato com aqueles rádios rectangulares pretos que todos os avós que se prezem têm. Estou eu a escolher um pano na barraquinha dos panos (tudo para estimular a economia local, porque uma pessoa compra um pano todo catita e exótico em Bissau e depois em Bolama vai ao Sr. Sadjo que é alfaiate e manda fazer um vestido ou umas calças, e assim se aposta no desenvolvimento da nação), e enquanto estou a olhar para os panos, a Guiné marca um golo… foi o delírio, a loucura! Mesmo assim, lá tive que me esforçar para negociar um preço aceitável pelos panos, nesta terra nada tem um preço fixo, e aprendi com o Kapuscinski que se o comprador não negoceia o preço é quase uma falta de respeito pelo vendedor, como se não o considerasse digno! Lá comprei os panos e o médico que estava comigo comprou uma T-shirt da selecção da Guiné (na loja do chinês, os chineses estão por todo o lado na Guiné, ai se eu gostasse de conspirações, tinha cá as minhas teorias!).
A Guiné ganhou ao Quénia 1:0, e segundo o que consta não ganhava um jogo há 12 anos… imaginem as ruas… qual marquês de pombal qual quê! E a tal T-shirt fez o sucesso das avenidas de Bissau…até um abraço dum total desconhecido levei!! E gritavam: ” Guiné no coração”!! Não gosto de futebol, mas gostei imenso da animação das ruas, estava toda a gente na rua a celebrar o facto de serem Guineenses, havia gargalhadas e felicidade no ar. É pena, é que seja só por causa do futebol, este orgulho em ser Guineense, esta vontade de vencer, se isto fosse canalizado para outras áreas como a saúde, a educação, o desenvolvimento do país, era tão melhor… Mas amanhã esta vontade de ver a Guiné vencer já passou e a velha frase vai voltar “jeto ca tem!” (não há maneira, não dá!). E isto não acontece porque eles são piores que nós (portugueses ou europeus) ou porque são mais preguiçosos, acho que a principal razão é a falta de memória! Eles esqueceram-se que é possível, que há esperança, que apesar de levar tempo as coisas podem melhorar! Estas pessoas viram muita desgraça nos últimos anos, viram e vêem, e com o passar do tempo esqueceram-se daquele velho princípio do “quem semeia, colhe!”, talvez por isso tenham deixado de semear…
Mas não foram só eles! O Alzheimer é muito prevalente do nosso lado do mundo assim como a miopia… então para que não nos tornemos vesgos e esquecidos, resta-nos estar atentos ou como há quem goste de lembrar: “vigiai e orai”…
Duvido que à excepção do leitor imaginário alguém tenha lido isto até ao fim, mas caso esse alguém exista, fica aqui um grande bem haja para o corajoso(a)!!
Ha sempre um corajoso e acredito que varios..
ResponderEliminarSeguramente almoçaste com a alma do Kapuscinski, porque ele morreu em 2007 em Varsovi... e não são os bouquins espelhos da alma?.. Como são os teus textos, também.
Como faço "colecção" de jornalistas africanistas o “The Soccer War” ja esta na calha.
Boa continuação Livingstone consciente.
eu n leio até ao fim, eu leio a primeira e segunda linha! ou não
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