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Dia 48_ “de vez em quando sinto-me em casa”

Esta foi a minha terceira viagem à ilha das galinhas (e última…ai!) e aconteceram muitas coisas interessantes, como a história do tio João e da seringa “en garde” na luta contra a pneumonia, como ter aprendido a pôr soro nos doentes (bom… não acertei na veia à primeira, mas o que conta é participar!), como ter comido Korn bife a todas as refeições, como ter apanhado um sem número de chuvadas em cima e… E era aqui que eu queria chegar (tudo técnicas para criar suspense), ter participado num acampamento de jovens cristãos vindos de toda a Guiné, e isto sim foi bem interessante!

Pelos vistos, este acampamento acontece todos os anos na ilha das galinhas, juntam-se uns 250-300 jovens vindos de várias igrejas protestantes de toda a Guiné, para uma semana de convívio, reflexão e descanso. Caso sejam frequentadores assíduos aqui do “tasco” devem ter lido uns comentários feitos por alguns dos leitores não imaginários (até custa a acreditar que os há!) que diziam que neste acampamento de jovens, há uns anos atrás, havia o projecto de comprar uma canoa para que houvesse um transporte público entre a ilha e Bissau e o de construir uma escola. E assim foi, lá estava a canoa em pleno funcionamento e a escola também, sendo que tudo nasceu devido a várias parcerias entre a igreja evangélica de Bissau, a ABLA (Associação de Beneficência Luso Alemã), algumas igrejas evangélicas portuguesas, a comunidade residente na ilha, entre muitos outros anónimos, e isto, caros leitores, isto é que é bonito!! É impossível não ficar feliz quando vejo que há pessoas que andam por esse mundo de olhos abertos e, mais do que isso, de mãos abertas, dispostas a fazer, a ensinar, a dar, a orar, a ir!

É a história de uma dessas pessoas que vos trago. Ontem ao fim da tarde, tive uma conversa muito agradável com a mulher do pastor da igreja da ilha, uma jovem de S.Tomé que viveu grande parte da vida em Portugal, onde estudou e conheceu o marido, e onde, também, decidiu ter uma vida relevante, para lá dos padrões de mulher bem sucedida, de carreira e de felicidade. Por causa disto, juntou-se ao marido num projecto de vida a dois com o objectivo de melhorar as condições de vida dos habitantes da ilha das galinhas e de outras ilhotas ali à volta. O que inclui a escola, a canoa, a responsabilidade da igreja e das várias congregações, e ainda colaborar com a AMI como agente de saúde local. Uma mulher de 30 e poucos anos, com uma filha pequena, num sítio sem electricidade, sem água, onde só há rede de telemóvel num sítio da ilha (ligeiramente à esquerda da porta do posto de saúde), mas com muitos sonhos, com muita vontade de ajudar a construir um país que agora é o dela!

A meio da conversa senti-me como se estivesse num daqueles cultos missionários a ouvir as histórias “da África”, reuniões onde, enquanto crescia, me habituei a sonhar e a sonhar alto, onde descobri que queria ser médica, onde decidi que queria ser relevante, onde no meio de bandeiras, fotografias e histórias mirabolantes fui descobrindo um mundo maior do que o meu, maior do que eu… Mas desta vez, não estava confortavelmente sentada na igreja enquanto o missionário falava, desta vez estava sentada no chão e sem tradutor, numa conversa onde me senti pequenina e muito grata! Grata pela oportunidade, grata por estar onde sonhei estar, grata por poder fazer parte…

E por falar em fazer parte, assisti a uma das reuniões da noite do acampamento e senti-me em casa, há coisas que são iguais em qualquer parte do mundo, principalmente no dito “movimento protestante”!

Por exemplo, estava para aí há duas semanas na Guiné e decidi ir visitar a igreja local, uma igreja pequenina com umas 40 pessoas, como não podia deixar de ser o culto começou com música e muita música, a qual eu só consegui acompanhar com palmas e cantar os “Aleluias” (dado que, o meu crioulo ainda andava pelas ruas da amargura, agora já encontrou a redenção!). Entretanto, a música acaba e a pessoa que estava a dirigir a reunião começa a falar num crioulo acelerado (chinês para mim) e termina a frase com a seguinte palavra: “visitante” e, de repente, todos estão a olhar na minha direcção, bom qualquer protestante sabe que este é o momento mais lindo da igreja : “os benvindos!” seja na Guiné, em Pequim ou em Fanhões! Lá me apresentei e recebi todos os sorrisos simpáticos da congregação e vá lá safei-me da música das “boas vindas” (isto deve ser uma adaptação portuguesa), e mais uma vez senti-me em casa! Na altura da pregação, uma senhora levanta-se do seu lugar e senta-se ao meu lado, tinha reparado que eu não tinha Bíblia para acompanhar a leitura e veio partilhá-la comigo, foi bonito, foi-me familiar… soube bem!

Leitor imaginário e outros que por aí estejam, espero que estas histórias vos façam sonhar e desejar fazer parte da construção desta obra… deste mundo! Para que a miopia, o medo, o esquecimento e as cadeiras fofinhas não nos impeçam de ir, de ir e de cumprir a nossa parte!

Comentários

  1. É bom ir acompanhando as tuas experiências Bianca! é bom ver que no meio dessa realidade Deus tem trabalhado na tua vida e também na dos que cá se encontram ;)
    Obrigada porque nos colocas as lentes adequadas para corrigir a miopia :)
    Beijinho
    Sara Vidal

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  2. miúda, eis que tens o dom de encontrar beleza em tudo. os míopes porque se esforçam para focar acabam por ver coisas que os de "boa visão" deixam passar. e nessa terra diria que quase passamos a hipermetropizar, tal é a cadência dos acontecimentos.

    abraço grande

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