Os dias aqui têm um ritmo diferente, a primeira semana durou uma eternidade. Os dias arrastaram-se e trouxeram com eles uma espécie de avalanche emocional com uma violência que não estava à espera. No entanto, apesar da tempestade e de umas quantas molhas (umas mais literais do que outras), a segunda semana começou e com ela germinou a rotina e alguma previsibilidade que trouxe um cheiro, muito suave ainda, de segurança.
E foi no meio da confusão, cada vez mais organizada, que fui decorando os nomes das pessoas (tarefa demasiado difícil, por vezes), fui também aprendendo duas ou três perguntas em Hindi, graças às minhas “tias” e à sua vontade de me verem a falar com e como elas, descobri onde são os sítios principais, aprendi um bocadinho da complexa organização social desta comunidade e decorei que ao domingo é dia de comer frango (durante a semana a ementa é vegetariana).
E sem dar por ela, a terceira semana apareceu e acabou, e agora já conheço as caras, mas a luta com os nomes continua; e agora até já percebo as piadas delas, mesmo não percebendo Hindi; agora descobri que sempre que utilizo uma ilustração prática para ensinar seja o que for elas ficam todas contentes, descobri que gostam dos meus jogos e que têm vontade de ouvir histórias da Bíblia… que bom!
Contudo, não é tudo bom, por aqui há coisas bastante difíceis… Há uns dias atrás uma das raparigas veio ter comigo, ela queria conversar! Fiquei contente, afinal foi para isto que viemos, para ouvir, para aconselhar, para ensinar, para aprender, para conhecer as pessoas. E ao longo da conversa fui-me sentido pequena… minúscula, tive muita vontade de me esconder debaixo da cama e de chamar alguém mais velho.
Ela tem cerca de 20 anos, está cá no centro há 6 meses, veio de longe, algures do sul da Índia, e foi num inglês sem gramática e sem flores que me contou que quando era pequena foi viver para casa do tio, porque o pai assinou um papel que dizia que ela passava a ser propriedade do tio (segundo ela, o pai foi forçado pelo tio a fazer isto…).
E, a partir desse momento ela passou a ser uma espécie de escrava em casa do tio, limpava a casa, cuidava dos bebés, fazia a comida e todos os dias massajava as pernas da tia durante duas horas… Nunca foi à escola, durante 12 anos foi escravizada e brutalmente espancada. Um dia tentou fugir! A tia adormeceu durante a massagem e ela correu para casa de uma vizinha que a recebeu e prometeu que a ia ajudar, mas depois apareceu o tio à procura dela e no meio de muita chapada e pontapé ela foi arrastada para casa! Ao chegar a casa, para a menina aprender a lição, o tio bateu-lhe com uma barra de ferro até lhe partir uma perna, depois esfaqueou-a no ombro e na mão (ela mostrou-me as cicatrizes). Por fim, depois de tamanha violência… mandou-a limpar a parede que estava cheia de sangue, nos dias 6 dias que se seguiram não lhe deram de comer e fecharam-na na casa de banho.
Ela conta que na noite do sexto dia estava totalmente desesperada e com vontade de morrer, sem forças… e que foi nessa altura que viu do outro lado da janela alguém ou algo que ela não sabe bem explicar mas que ela acredita que foi Deus e que lhe disse: “ não tenhas medo, não estás sozinha!”. A verdade é que no dia a seguir, subitamente, a tia abriu a porta e deu-lhe de comer. E, passado pouco tempo, o tio mandou-a trabalhar fora de casa, porque queria o dinheiro do ordenado dela para pagar a escola dos filhos. Neste novo emprego as pessoas perceberam que alguma coisa se passava e depois de ela contar a história dos últimos 12 anos, decidiram ajudá-la. Uma destas pessoas, conhecia o patrão do tio, então por coacção convenceram-no a deixá-la ir viver num abrigo de uma ONG cristã. E assim acabou o martírio desta menina, depois passado uns meses ela veio aqui para o centro, aqui vai ter mais oportunidade de estudar e de construir uma vida nova!
Percebem porque é que me senti pequena?
Ouvi, chorei por dentro (talvez um dia ganhe coragem para chorar por fora), falámos do futuro, dos sonhos, da vontade de aprender a ler (para poder ler a Bíblia) e acabámos com um abraço e oração…
Leitor imaginário, a vida por aqui é cheia de histórias, mas aqui a Cinderela não é uma história de embalar, espero que esta Cinderela nos acorde e nos torne mais despertos e prontos para as necessidades deste mundo.
Um abraço para todos!
Bianca que história (real) mais comovente, fiquei sem palavras!!! espero que Deus te dê a sensibilidade para saberes ouvir, porque infelizmente ainda há problemas muito problemáticos de resolver, só mesmo a mão de Deus. Beijinhos Deus te proteja e abençõe
ResponderEliminarValorizamos demasiado os nossos problemas, quando os verdadeiros problemas são outros
ResponderEliminarVim aqui parar há uns dias, fico a orar pelo teu trabalho. Tocante, esta história!
ResponderEliminarBem Bianca... são realidades que nos ultrapassam mesmo... Ansiosa pelo teu regresso e por saber mais dessa realidade...
ResponderEliminarUm beijinho grande para ambos e abraço do Énio
Ana Sofia
Um grande abraço Bianca e André
ResponderEliminarMuita Força... Vocês são uma bênção.
Marcos Oliveira